O Estado de S. Paulo
No novo cenário geopolítico, deve interessar às duas partes concluí-lo. Por isso é urgente que o Mercosul se pronuncie em resposta à ‘side letter’ da UE
Como uma das consequências das tensões
geradas pelos interesses e políticas ocidentais em relação à Rússia e à China,
a Europa voltou a buscar a ampliação de seus laços econômicos e comerciais com
a América do Sul, em especial com o Mercosul. Desde janeiro, as visitas de alto
nível ao Brasil de governos de países europeus (Alemanha, Espanha, Noruega e
França) e as viagens do presidente Lula a Portugal e Espanha ainda este mês
parecem indicar uma renovada prioridade para a assinatura e a ratificação do
acordo do Mercosul com a União Europeia (UE).
No início de março, em Buenos Aires, representantes dos países do Mercosul e os da UE retomaram os entendimentos com vistas à assinatura e a ratificação do acordo de livre-comércio entre os dois grupos, em negociação há 20 anos. Poucos dias antes da referida reunião, a direção da UE encaminhou side letter (protocolo adicional) contendo novas condicionantes para a assinatura do acordo. A proposta, que levou três anos para ser finalizada pelos países europeus e foi concebida pela desconfiança nutrida em relação aos compromissos do governo Bolsonaro, chegou em hora errada, em vista da mudança da política ambiental e da decisão do governo Lula de tomar medidas contra os ilícitos cometidos na Amazônia.
A side letter era para ser mantida reservada,
mas vazou para a imprensa por ONGs ambientalistas insatisfeitas com as
tratativas. Sabe-se que o documento determina que os países teriam de assumir
uma série de compromissos ambientais, de biodiversidade e sobre direitos
humanos. Uma das novidades foi a proposta de uma nova meta de desmatamento
provisória para ser cumprida até 2025. Segundo o texto, os dois lados se
comprometem a “deter e reverter a perda de florestas e a degradação da terra
até 2030, ao mesmo tempo que se proporciona desenvolvimento sustentável e
promove uma transformação rural inclusiva”. “Para este fim, a UE e o Mercosul
estabelecerão uma meta provisória de redução do desmatamento de pelo menos 50%
em relação aos níveis atuais até 2025”. Os termos da side letter, se não atenuados,
poderão estimular setores do atual governo que, por pressão da indústria,
querem reabrir as negociações e rever algumas das cláusulas incluídas no
acordo, em especial no tocante a compras governamentais.
A proposta, como apresentada, certamente
deverá ser rechaçada pelo atual governo, por incluir demandas que extrapolam os
compromissos ambientais do acordo com a UE, os de preservação da Floresta
Amazônica e os previstos no Acordo de Paris, de 2015. Com isso, ficaria
inviabilizada a assinatura do acordo no segundo semestre deste ano, na
presidência brasileira do Mercosul.
No capítulo sobre Desenvolvimento
Sustentável e Meio Ambiente foi incluído, pela primeira vez, o princípio da
precaução, pelo qual os governos têm o direito legal de agir para proteger a
saúde humana, animal ou vegetal ou meio ambiente, mesmo quando a evidência
científica não é conclusiva. O Mercosul, por outro lado, registrou no acordo
que a precaução só pode ser invocada com evidência científica e que o ônus da
prova será do país que apresentar a reclamação contra o produto importado.
Com ou sem o acordo de livre-comércio, os
países do Mercosul terão de lidar ainda com dois conjuntos de novas medidas
restritivas dentro da política de meio ambiente e mudança de clima (green deal)
europeia.
Essas medidas impedem o acesso ao mercado
europeu de produtos agrícolas provenientes de áreas desmatadas, o que afetaria
produtos do agro brasileiro (carne, soja, café, cacau, azeite de palma,
borracha, madeira) e obrigaria os produtores nacionais a ampliarem, com custos
adicionais, programas de rastreabilidade e selo verde para demonstrar que a
produção saiu de outras áreas, sem desmatamento recente. Por outro lado,
produtos industriais, como siderúrgicos, cimento e fertilizantes, serão taxados
na fronteira pela emissão de gás carbono (carbon tax) para espelhar os custos
das empresas europeias com medidas para a redução das emissões. O governo
brasileiro, por meio do Itamaraty, sinalizou que irá recorrer à Organização
Mundial do Comércio contra essas medidas unilaterais da Europa.
Na reunião de Buenos Aires, os negociadores
da UE acenaram com a possibilidade de criação de um fundo de compensação no
qual a UE iria discutir com os países do Mercosul a possibilidade de oferecer
recursos financeiros para ajudá-los a se adaptarem às rígidas e unilaterais
regulações ambientais que Bruxelas implementará progressivamente.
Neste contexto, cabe lembrar que a União
Europeia está criando um mecanismo de defesa comercial para permitir que o
bloco possa retaliar medidas punitivas tomadas por outros países, como ocorreu
no caso da Lituânia, que sofreu restrições da China, por manter relacionamento
com Taiwan. Talvez seja o caso de Brasil e outros países, alvos de restrições
protecionistas, também examinarem medidas de defesa comercial contra ações
unilaterais de coerção de qualquer procedência.
No novo cenário geopolítico, deve interessar ao Mercosul e à União Europeia concluir positivamente este importante acordo. Por isso é importante e urgente o pronunciamento do Mercosul em resposta a esta side letter.
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