O Estado de S. Paulo
Ainda que persistam dúvidas sobre a exequibilidade da nova política fiscal, ela merece exame menos preconceituoso
Houve quem, alegando não ter visto algo relevante nos primeiros cem dias do governo Lula completados ontem, previsse que nada mais será feito de importante até 31 de dezembro de 2026. Assim, mal tendo começado, o governo Lula já teria acabado – ou se arrastaria pelos próximos 1.360 dias a partir de hoje. Houve também quem dissesse que o governo não fez nada. A despeito de decisões difíceis, mas essenciais, estarem sendo proteladas pelo Executivo, a paralisia implícita nesse tipo de visão é irreal.
Para quem exigia gestos espetaculares do
governo, especialmente no campo fiscal – um programa de corte profundo e
imediato de gastos ou propostas de redução rápida da relação entre dívida
pública e PIB e compromisso com limitações drásticas à atuação do Estado –, de
fato, nada aconteceu. Talvez nem aconteça até o fim da atual gestão. Aspirações
como essas, por mais legítimas que sejam, não são objetivos declarados do
governo nem sintetizam o que anseia a maioria dos eleitores que votaram em
Lula.
A reconstrução de políticas públicas
destroçadas no governo anterior, sobretudo as voltadas para a área social, a
recuperação de valores fundamentais como o respeito aos direitos humanos e à
vida, o restabelecimento paulatino do prestígio internacional do País corroído
por Bolsonaro talvez pareçam atos despiciendos para parte da população.
As circunstâncias em que Lula assumiu o
poder, depois da desastrosa gestão Bolsonaro, seguida da tentativa de golpe em
8 de janeiro, já tornavam difícil a tarefa de governar. O comportamento
errático do presidente, a sugerir um Lula menos hábil do que aquele que
governou de 2003 a 2010, de sua parte, pode ter gerado mais incertezas com
relação aos rumos de seu governo. E o governo ainda não tem um rosto e se
mostra sem ambição.
Nesse ambiente, nem mesmo o anúncio da nova
política fiscal – ou “arcabouço fiscal”, sua designação oficial – conseguiu
aplacar as críticas. Talvez as tenha intensificado. Irrealizável, metas
excessivamente otimistas, brutal aumento da carga tributária, crescimento real
dos gastos e desprezo à austeridade foram alguns comentários lidos e ouvidos
nos últimos dias. Há verdades, mas também excessos nessas críticas.
Por sua concepção inovadora, o arcabouço
fiscal – aceitemos a expressão – não atende inteiramente, e talvez nem
parcialmente, aos que exigem de qualquer governo liderado pelo PT um ajuste
fiscal profundo, com limites para gastos (cujo crescimento real, por hipótese,
seria vetado), contenção da dívida pública, neutralidade tributária (ninguém
pagará mais impostos do que já paga) e metas rigorosas para as contas
primárias. Nem por isso é peça descartável. Ainda que persistam dúvidas sobre
sua exequibilidade, dada a carência de detalhes fundamentais a serem
contemplados num projeto de lei cujo anúncio foi prometido para estes dias,
merece exame menos preconceituoso.
Embora um resumo oficial afirme que o
arcabouço “garante mais pobres no orçamento”, dando um tom de palanque a uma
peça técnica, há nele metas e condições importantes. O objetivo é zerar o
déficit primário já em 2024, com as contas fiscais evoluindo até se alcançar um
superávit equivalente a 1% do PIB em 2026. Para isso, o crescimento dos gastos
estará limitado a 70% da evolução da receita primária. Ainda assim, os gastos
mínimos com educação e saúde fixados pela Constituição estarão preservados. Da
mesma forma, haverá um piso para os investimentos públicos, cuja expansão é uma
das principais metas do governo. A projeção de crescimento real de despesas e
receitas não contradiz a evolução recente dessas contas.
Haverá uma folga, para mais e para menos,
para o resultado primário. Se o resultado for menor do que o piso, os gastos no
exercício seguinte serão restringidos, para recolocar as contas dentro da
margem de tolerância. No sentido contrário, se o resultado superar os limites
da meta, o excedente será convertido em investimentos no ano seguinte.
As metas de resultados primários definidas
pelo governo são mais rigorosas do que as projeções de economistas do setor
financeiro ouvidos regularmente pelo Banco Central. Na pesquisa Focus, as
previsões são de registro de déficit primário até 2026.
Entre os riscos desse modelo foi apontado o
de que uma alta excepcional da arrecadação resulte em aumento permanente de
gastos. Também há dúvidas sobre a eficácia do arcabouço na estabilização e,
posteriormente, redução da relação dívida/PIB. São observações relevantes. Mas
o que mais gera dúvidas é a não definição dos instrumentos que serão utilizados
para atingir as metas do arcabouço.
Essa definição poderá até dar razão aos que
questionam a viabilidade do programa. Mas poderá fortalecer o discurso oficial,
ainda que o arcabouço precise passar por um Congresso onde a oposição deve
tentar descaracterizálo. Não é uma situação confortável para o governo, mas
está muito longe de sinalizar sua paralisação ou seu fim.
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