terça-feira, 11 de abril de 2023

Jorge J. Okubaro - Uma sensação de paralisia

O Estado de S. Paulo

Ainda que persistam dúvidas sobre a exequibilidade da nova política fiscal, ela merece exame menos preconceituoso

Houve quem, alegando não ter visto algo relevante nos primeiros cem dias do governo Lula completados ontem, previsse que nada mais será feito de importante até 31 de dezembro de 2026. Assim, mal tendo começado, o governo Lula já teria acabado – ou se arrastaria pelos próximos 1.360 dias a partir de hoje. Houve também quem dissesse que o governo não fez nada. A despeito de decisões difíceis, mas essenciais, estarem sendo proteladas pelo Executivo, a paralisia implícita nesse tipo de visão é irreal.

Para quem exigia gestos espetaculares do governo, especialmente no campo fiscal – um programa de corte profundo e imediato de gastos ou propostas de redução rápida da relação entre dívida pública e PIB e compromisso com limitações drásticas à atuação do Estado –, de fato, nada aconteceu. Talvez nem aconteça até o fim da atual gestão. Aspirações como essas, por mais legítimas que sejam, não são objetivos declarados do governo nem sintetizam o que anseia a maioria dos eleitores que votaram em Lula.

A reconstrução de políticas públicas destroçadas no governo anterior, sobretudo as voltadas para a área social, a recuperação de valores fundamentais como o respeito aos direitos humanos e à vida, o restabelecimento paulatino do prestígio internacional do País corroído por Bolsonaro talvez pareçam atos despiciendos para parte da população.

As circunstâncias em que Lula assumiu o poder, depois da desastrosa gestão Bolsonaro, seguida da tentativa de golpe em 8 de janeiro, já tornavam difícil a tarefa de governar. O comportamento errático do presidente, a sugerir um Lula menos hábil do que aquele que governou de 2003 a 2010, de sua parte, pode ter gerado mais incertezas com relação aos rumos de seu governo. E o governo ainda não tem um rosto e se mostra sem ambição.

Nesse ambiente, nem mesmo o anúncio da nova política fiscal – ou “arcabouço fiscal”, sua designação oficial – conseguiu aplacar as críticas. Talvez as tenha intensificado. Irrealizável, metas excessivamente otimistas, brutal aumento da carga tributária, crescimento real dos gastos e desprezo à austeridade foram alguns comentários lidos e ouvidos nos últimos dias. Há verdades, mas também excessos nessas críticas.

Por sua concepção inovadora, o arcabouço fiscal – aceitemos a expressão – não atende inteiramente, e talvez nem parcialmente, aos que exigem de qualquer governo liderado pelo PT um ajuste fiscal profundo, com limites para gastos (cujo crescimento real, por hipótese, seria vetado), contenção da dívida pública, neutralidade tributária (ninguém pagará mais impostos do que já paga) e metas rigorosas para as contas primárias. Nem por isso é peça descartável. Ainda que persistam dúvidas sobre sua exequibilidade, dada a carência de detalhes fundamentais a serem contemplados num projeto de lei cujo anúncio foi prometido para estes dias, merece exame menos preconceituoso.

Embora um resumo oficial afirme que o arcabouço “garante mais pobres no orçamento”, dando um tom de palanque a uma peça técnica, há nele metas e condições importantes. O objetivo é zerar o déficit primário já em 2024, com as contas fiscais evoluindo até se alcançar um superávit equivalente a 1% do PIB em 2026. Para isso, o crescimento dos gastos estará limitado a 70% da evolução da receita primária. Ainda assim, os gastos mínimos com educação e saúde fixados pela Constituição estarão preservados. Da mesma forma, haverá um piso para os investimentos públicos, cuja expansão é uma das principais metas do governo. A projeção de crescimento real de despesas e receitas não contradiz a evolução recente dessas contas.

Haverá uma folga, para mais e para menos, para o resultado primário. Se o resultado for menor do que o piso, os gastos no exercício seguinte serão restringidos, para recolocar as contas dentro da margem de tolerância. No sentido contrário, se o resultado superar os limites da meta, o excedente será convertido em investimentos no ano seguinte.

As metas de resultados primários definidas pelo governo são mais rigorosas do que as projeções de economistas do setor financeiro ouvidos regularmente pelo Banco Central. Na pesquisa Focus, as previsões são de registro de déficit primário até 2026.

Entre os riscos desse modelo foi apontado o de que uma alta excepcional da arrecadação resulte em aumento permanente de gastos. Também há dúvidas sobre a eficácia do arcabouço na estabilização e, posteriormente, redução da relação dívida/PIB. São observações relevantes. Mas o que mais gera dúvidas é a não definição dos instrumentos que serão utilizados para atingir as metas do arcabouço.

Essa definição poderá até dar razão aos que questionam a viabilidade do programa. Mas poderá fortalecer o discurso oficial, ainda que o arcabouço precise passar por um Congresso onde a oposição deve tentar descaracterizálo. Não é uma situação confortável para o governo, mas está muito longe de sinalizar sua paralisação ou seu fim.

 

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