O Globo
Nunca imaginei que concordaria com Arthur
Lira. Espero não me arrepender. A matéria da concordância é a proteção ao Marco
Legal do Saneamento, aprovado pelo Congresso e sancionado em 2020; cujo
objetivo tem décadas de atraso: universalizar a oferta de água e o esgotamento
sanitário em dez anos.
A meta é ambiciosa. Não poderia ser
diferente. Cem milhões de pessoas não têm rede de esgoto. São 35 milhões os sem
água potável. Quase tudo vai por fazer. O Brasil precisa de intentos ousados
para curto prazo. Em termos de saneamento, estamos — mesmo em algumas áreas de
centros urbanos modernos — nalgum buraco entre 1930 e 1940.
Quem dera nossa vala fosse a língua de fezes que escorre pelas areias das praias — e que incorporamos como dado da paisagem. Nosso buraco é tão fundo que essa ferida em Copacabana se torna perfumaria. A nossa fossa é a que deriva de tirar a cabeça da bolha para exercício de imaginação simples: se é assim em Búzios, como será onde não se monta cartão-postal?
Falharam historicamente as empresas estaduais encarregadas de retirar cocô da frente da porta pela qual as crianças saem de casa para ir à escola. A explicação mais frequente em defesa dessas companhias — de que foram sucateadas pelo aparelhamento político-partidário — consiste na própria corroboração-constatação de inviabilidade do sistema. (Sendo os aparelhadores e seus apaniguados os que militam pela sustentação do esquema viciado gerador de doenças.)
As companhias estatais tiveram muitas
chances, não menos bilhões de dinheiros, para aterrar uma das fundações,
decerto entre as mais aberrantes, da desigualdade — a combinação entre água
tratada inacessível e esgoto a céu aberto — e não conseguiram.
Não conseguiram. Ponto final.
O Marco do Saneamento, ao dar vez ao setor
privado, cria as condições competitivas capazes de oferecer uma alternativa
crível — e longe de ser solução garantida, como demonstra a operação dos trens
urbanos no Rio de Janeiro. Gestão pela iniciativa privada da coisa pública — a
SuperVia ensina — não é a panaceia do mundo. As iniciativas ordenadas pela Lei
do Saneamento, no entanto, são saneadoras. Botam a bola no chão. A legislação é
boa. Não estabelece o fim das estatais. Exige que se estruturem para concorrer.
Não é excludente. É estruturante.
É o caminho; a exigência — por
investimentos em infraestrutura com o condão de sanear vidas — mobilizando
reações em socorro de superfícies cujas existências ora têm por fim a
manutenção de milhares de boquinhas.
O novo conjunto legal expôs a incompetência
mais básica das empresas estaduais de água e esgoto. Não há outra qualificação
para isto: mais de 1.100 municípios, com população de cerca de 30 milhões,
cujos contratos para serviços de água e esgoto são considerados irregulares
porque as companhias não conseguiram comprovar meios de promover os
investimentos exigidos. Algumas estatais exercitaram o desaforo de nem sequer
mandar a documentação à Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico.
A isso, à exibição da impossibilidade de
(do desdém em) enfrentar o problema dramático do saneamento no país, o governo
Lula reagiu com os decretos — ilegais, por avançarem sobre prerrogativas do
Parlamento — fiadores de sobrevida às empresas estaduais deficitárias.
Canetadas que prorrogaram — atropelando determinação que só o Congresso poderia
rever — os prazos para a comprovação da capacidade de investimento por
companhias que jamais conseguiram ofertar minimamente o que lhes cabia.
O governo Lula não tem pressa em matéria de
saneamento básico, uma urgência. É o que informa. Apressou-se, porém, em
decretar pela permanência — na banguela — de empresas impróprias para prestar
os serviços que lhes dão finalidade. O puxadinho segundo o qual companhias
estaduais poderiam atender diretamente — sem licitações municipais —
agrupamentos de cidades é autoevidente. A justificativa para a gambiarra obriga
ou decreto legislativo ou ação ao Supremo: por meio desses ajuntamentos,
descaracterizadas as unidades municipais, o estado seria considerado o titular
do serviço — e cairia a necessidade de licitação.
Que tal?
O presidente da Câmara, generoso, chamou a
manobra de “um absurdo”. Disse que os dois decretos impõem retrocessos. E foi
explícito ao afirmar que não aceitará retrocessos.
Lira é a favor de aprimorar a legislação —
mas não explicou em que consistiria esse aprimoramento. (Seria o caso de explicar
também o que compreende por retrocesso; e retrocesso para quem.) É onde temo me
arrepender ao lhe elogiar a disposição. Porque, se não resta dúvida de que
qualquer mudança no Marco do Saneamento deve ser feita via Congresso, dúvida
tampouco há de que se possa usar essa prerrogativa republicana para vender mais
caro o assalto à lei.
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