Folha de S. Paulo
A política está mudando com ou sem o
governo Lula
Nesses primeiros cem dias, no lado
positivo, podemos citar a reafirmação da democracia em face do golpismo, as
medidas emergenciais de auxílio aos yanomamis, a
retomada de políticas sociais, a recolocação do Brasil nas relações
internacionais, a desmilitarização do governo, o anúncio do novo marco fiscal.
No lado negativo, brigas desnecessárias de Lula com o Banco Central e, principalmente, a tentativa de enfraquecer a Lei das Estatais e de travar qualquer processo de privatização.
Mas façamos um paralelo: aos cem dias do governo Bolsonaro, o
presidente já havia trocado dois ministros (um deles, o da Educação), declarara
que nazismo é de esquerda, determinara a comemoração do golpe de 1964 e causara
celeuma nas redes sociais ao falar de "golden shower". Hoje,
discutimos a credibilidade da política
econômica. É um avanço cultural.
Há, no entanto, algo que aproxima os dois governos: a dificuldade da relação
com o Congresso.
Bolsonaro chegou ao poder com a promessa de
não negociar com o
Congresso. O povo na rua pressionaria os parlamentares a votar
com o governo. Apesar do grande número de apoiadores quinzenalmente nas ruas em
2019, a estratégia fracassou. O Congresso se fortaleceu, votando, por exemplo,
as emendas impositivas e travando pautas do governo.
Quando a maré da opinião pública virou com mais força contra o governo, na pandemia,
Bolsonaro teve que se lançar no colo do Congresso, comprando sua própria
sobrevivência com cargos e os bilhões de reais do orçamento secreto.
Já Lula chegou mais do que disposto a negociar apoio, mas mesmo assim enfrenta
dificuldades enormes. Cedeu espaço, mas até agora não tem votos.
Em entrevista
para a Folha cerca
de 20 dias atrás, o deputado Elmar Nascimento, da União Brasil, descreveu de
forma muito precisa a nova relação: não é porque cedeu cargos que o governo
garante os votos da bancada do partido. Esses serão negociados pauta a pauta, e
o partido não se comportará como um bloco coeso sempre. "Depende da pauta.
Tem pauta que vai ter todos os votos. Tem pauta que não vai ter nenhum."
Essa postura modera os piores excessos do
governo. Serviu para matar o projeto do voto impresso em 2021. E deve agora
limitar os piores retrocessos na investida do governo contra o marco do
saneamento. Isso vale para muitas pautas, mas não para todas: em tudo aquilo
que possa beneficiar os parlamentares com mais verbas e acesso a cargos, o
próprio Congresso dificilmente será uma barreira eficaz.
Os próprios deputados hoje têm menos espaço
para votar de acordo com sua opinião pessoal ou seu interesse partidário, pois
correm mais risco de desagradar a base de eleitores. A razão disso é que os
eleitores hoje estão mais próximos da política e acompanham as votações de seus
parlamentares.
Um sintoma particularmente nefasto disso
são os parlamentares que vivem de fazer vídeos para suas redes sociais,
inclusive usando o Congresso de palco privilegiado para suas palhaçadas. O
escrutínio quase obsessivo de gastos em viagens e penduricalhos também é parte
desse novo interesse popular.
Por outro lado, um perfil fundamental da política democrática, o deputado que
sabe conversar com todos, negociar e compor com seus adversários quando
necessário, esse tende a ter mais dificuldade com o público. Sentar-se para
negociar com alguém do lado oposto é visto como uma traição à pureza dos
valores de seu lado do espectro.
São desafios de uma política que se torna mais democrática. E a reação do governo pode
ser apostar ainda mais fundo na compra de apoio ou reinventar o diálogo com os
eleitores de forma a quebrar a polarização que arrisca nos paralisar.
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