Valor Econômico
Carência afeta brasileiros mais
vulneráveis, em especial os do Norte e Nordeste
Às vésperas de completar três anos de
vigência, a lei do saneamento teve seus princípios básicos modificados por
decretos federais, publicados nos últimos dias. A premissa central que norteou
a Lei 14.026/20, o chamado Marco do Saneamento, foi a universalização, até
2033, do acesso diário a água potável, coleta e tratamento de esgotos, por
todos os brasileiros - o que chamamos de saneamento básico. A inaceitável
realidade é que 33 milhões de brasileiros ainda não têm água tratada e 100
milhões não têm coleta de esgotos. Além disso, em todo o país, apenas metade do
esgoto coletado é tratado, sendo despejados na natureza, todo dia, o
equivalente a 5,5 mil piscinas olímpicas de dejetos sem tratamento, com as
nefastas consequências sobre saúde pública e poluição dos corpos hídricos.
A falta de saneamento afeta, principalmente, os brasileiros mais vulneráveis, sendo que as regiões Norte e Nordeste apresentam os indicadores mais críticos: 43% da população da região Norte não tem acesso a água tratada e 9 entre 10 habitantes não têm coleta de esgoto; no Nordeste, apenas 30% da população têm esgoto coletado. As milhões de pessoas sem água potável e coleta de esgoto têm face: os mais pobres e os negros, reproduzindo-se a desigualdade social e de renda na disparidade de acesso a saneamento básico. De acordo com dados da Pnad e do Instituto Trata Brasil, 61% das pessoas sem serviço de água e 56% das que não têm seus esgotos coletados moram em domicílios com renda per capita diária inferior a cerca de R$ 25. Da população sem acesso a água tratada, 67% são negros e entre os que não têm coleta de esgotos, 66%.
A falta de saneamento básico, além de
afetar principalmente as pessoas mais vulneráveis, cria um círculo vicioso de
causa e efeito, pois reduz a produtividade escolar e profissional, eleva o
custo da saúde pública e reduz as oportunidades de inclusão e ascensão social
desse grupo.
Por outro lado, estima-se que cada R$ 1 mil
investidos em saneamento resultam em economia de R$ 1,7 mil em ações sociais de
longo prazo, especialmente pela menor incidência de doenças nessa população e a
consequente redução de gastos em saúde pública.
Esses brasileiros não podem mais esperar
para ter seus direitos básicos assegurados. E, certamente, para os que carecem
de água e coleta de esgoto, não importa se os serviços são prestados por
empresas públicas ou privadas. Querem água na torneira e coleta de esgoto em
suas casas. Dignidade. Por décadas as empresas públicas foram praticamente as
únicas prestadoras dos serviços de saneamento e é de amplo conhecimento a
vergonhosa situação em que o país se encontra, mesmo quando comparada a países
com renda per capita muito inferior à nossa. Estamos estacionados no século XIX
no que diz respeito a esse tema.
Até a edição da lei do saneamento não havia
métricas de avaliação para a prestação de serviços de saneamento, nem
fiscalização sobre sua qualidade. Todos os indicadores do setor eram de caráter
auto declaratório, passíveis de incorreções e, em geral, referentes a obras -
como a construção de elevatórias, estações de tratamento, instalação de
infraestrutura de canos - e não relativos à aferição da efetiva e adequada
prestação de serviços de saneamento.
Em casos como o da Cedae, no Rio de
Janeiro, após a concessão dos serviços constatou-se a existência de
equipamentos de coleta e tratamento de esgotos que nunca haviam se tornado
operacionais, infraestrutura de água instalada, mas prefeituras comprando
carros-pipa para abastecer as escolas de água potável. Situações absurdas como
a do interceptor oceânico na zona sul da cidade do Rio, que foi construído há
52 anos e é responsável por coletar a maior parte do esgoto dessa região: o
interceptor foi limpo, pela primeira vez, pela concessionária privada que é
agora responsável por sua operação, tendo sido retirados, em um ano, 2 mil
toneladas de resíduos, possibilitando a operação do equipamento a plena
capacidade.
Mesmo estatais consideradas eficientes,
como a Sabesp,
têm desempenho insuficiente, basta ver a crítica situação do rio Tietê, que
corta o Estado de São Paulo e cujos índices de poluição aumentam a cada ano.
A lei do saneamento, que teve o voto
contrário da maioria dos parlamentares dos partidos de esquerda e de todos os
filiados ao PT, PSOL e PCdoB, forneceu um arcabouço jurídico e regulatório
capaz de dar segurança para o elevado volume de investimentos imprescindível
para garantir os serviços a todos os brasileiros. Também estipulou prazos para
que as empresas públicas pudessem se adequar à nova lei, inclusive em relação à
comprovação de sua capacidade econômico-financeira, e as cidades pudessem se
organizar em blocos regionais.
A regionalização é importante, em primeiro
lugar, porque os investimentos em infraestrutura de esgotos têm economias de
escalas, diluindo-se o alto custo do investimento em maiores extensões; em
segundo lugar porque, combinando-se diferentes áreas, é possível tornar
atrativo o bloco como um todo pelo princípio do subsídio cruzado, em que áreas
com maior retorno para o investimento viabilizam os serviços nas áreas menos
atrativas, em geral as mais pobres. Esse foi o modelo adotado no leilão de
concessão da Cedae em 2021, a maior concessão de saneamento do Brasil, que teve
sua área de atuação no Estado dividida em 4 blocos, cada um incluindo um
conjunto de bairros da capital.
Portanto, para que aconteça a
universalização dos serviços de saneamento básico até 2033 o princípio da
regionalização é fundamental. Como também é fundamental que as empresas que
realizam os investimentos - sejam públicas ou privadas - tenham comprovada
solidez econômica e financeira. Sendo assim, alterar por decreto os princípios
que balizaram a lei do saneamento, flexibilizar prazos e condições, dar sobrevida
a empresas públicas sem capacidade de prestar serviços no prazo e qualidade
requeridos, possibilitar novamente que municípios contratem empresas públicas
sem licitação, gera insegurança para os investimentos privados e, com
probabilidade muito alta, terá como consequência o não atingimento da meta de
que todos os brasileiros tenham saneamento básico até 2033.
Já assistimos a filme parecido em relação
aos Planos Nacionais de Resíduos Sólidos e o final não foi feliz. A lei de
2010, que reviu a de 2007, deu prazo de 4 anos para que os municípios
apresentassem planos de disposição ambiental adequada dos rejeitos e poucos o
fizeram. Em 2023 quase metade do lixo gerado nas cidades ainda vai para aterros
inadequados, os chamados lixões, com suas implicações sociais, de saúde e
ambientais, apesar das pesadas penalidades previstas na legislação. Negar aos
cidadãos um direito básico, especialmente aos mais vulneráveis e que não têm
voz, não deveria estar em discussão. Foi um longo e demorado percurso até a
aprovação do Marco do Saneamento, os brasileiros já esperaram demais, não
podemos aceitar que haja retrocessos.
*Maria Silvia Bastos Marques é doutora em economia, foi presidente do BNDES, Goldman Sachs, Icatu Seguros e CSN e secretária de Fazenda da cidade do Rio de Janeiro.
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