Folha de S. Paulo
O problema é que a maior parte dessa
direita rendeu-se ao projeto bolsonarista
O bolsonarismo não deveria ter um papel
importante no futuro político do Brasil, para o bem da nossa democracia. A
direita, sim. O bolsonarismo, dizia eu na
coluna anterior, revelou-se um caminho para o fascismo, trabalhando
arduamente para remover os obstáculos que a democracia liberal projetou para
evitar a autocracia. A direita, entretanto, para surpresa apenas dos militantes
mais dogmáticos da esquerda, não apenas tem o direito de existir na democracia
como é parte essencial do desenho institucional e da cultura política desse
regime.
Não se trata apenas de uma questão de legitimidade, mas de uma decisiva conveniência democrática na atual circunstância. Civilizar o bolsonarismo implicará, creio, numa "desbolsonarização" da direita brasileira —que é eleitoralmente forte, mas ideologicamente confusa, facilmente manipulável e dificilmente resiste a um apelo autoritário.
Ao contrário de outras direitas mundo
afora, a típica direita nacional não passou pelo movimento liberal, para criar
os anticorpos essenciais contra o absolutismo e qualquer forma de autocracia,
nem pelo Iluminismo, para criar resistência ao dogmatismo e à intolerância. Por
isso mesmo, entrega-se com inquietante frequência ao canto da sereia de golpistas e
populistas-autoritários, como vimos em 1964 e em 2018. Foi assim que uma parte
expressiva da direita brasileira fez jus à própria má fama de que se deita com
déspotas e tiranetes quando a ocasião se apresenta.
Essa é uma das razões pelas quais boa parte
da sociedade passou anos usando "direita" como insulto. Com isso,
perdeu-se de vista duas dimensões essenciais.
Primeiro, desapareceu a distinção entre
esquerda e direita como posições legítimas no arco do republicanismo, de um
lado, e a direita que abandona as regras do jogo democrático por ditaduras e a
esquerda que despreza as liberdades para se entregar ao totalitarismo, do
outro.
A direita é uma posição republicana, mas
nem sempre se contém nos limites da democracia, como nas desventuras fascistas
na Europa ou nos golpes
militares latino-americanos do século 20. A esquerda é uma criatura da
Revolução Francesa, mas parte dela fomentou e sustentou projetos políticos cuja
execução, como se provou, eram incompatíveis com um regime de liberdades e
direitos.
Não nos importa a direita ou a esquerda em
si; a legitimidade democrática delas não decorre de serem uma coisa ou outra,
pois quando abandonam as regras do jogo democrático são republicanamente
imprestáveis. A direita e a esquerda republicanas é o que nos interessa.
A segunda coisa importante é a reabilitação
do espaço democrático como apropriado para uma direita republicana. Lá pelo
início de 2017, sob o impacto da vitória de Trump e provavelmente temorosa do
que poderia acontecer no nosso país em 2018, a deputada Maria do Rosário
publicou em uma rede social: "A posse de Trump nos leve a pensar sobre o
Brasil: temos que construir unidade contra a direita. Não existe democracia com
a direita no poder".
Ora, o verdadeiro é o contrário. Não apenas
porque não existe poder democrático se a direita (ou a esquerda) não puder
chegar ao poder como tampouco há de se aceitar como uma fatalidade que a
direita (ou a esquerda) ao poder comporte-se como se a democracia não
existisse. Ou a democracia resiste e continua um regime igualitário de
liberdades e direitos com a direita no poder ou é uma ficção.
A democracia, por óbvio, não é de esquerda,
mas sim o espaço por excelência em que direita e esquerda, conservadores e
liberais e quem mais chegar negociam os seus desacordos e o conflito entre suas
reivindicações. Nem a esquerda é, historicamente, sinônimo de democracia,
considerando o tanto de esquerdas ao poder rodando regimes
autocráticos, nem podemos abrir mão da exigência de que as nossas direitas
se comportem de forma estritamente republicana, no poder ou na oposição.
Reclama-se tanto da polarização brasileira
que, recentemente, inventou-se que a cura para essa degeneração seria a
reconstrução do centro político. Na verdade, o problema é que a maior parte do
que era a direita republicana, ao menos do ponto de vista eleitoral, rendeu-se
ao projeto bolsonarista.
A esquerda, curiosamente, continua onde
costumava estar, apesar de todos os maremotos; a direita é que abandonou o
combinado republicano e estava lá, aconchegada no bolsonarismo. É fundamental
que encontre o caminho de volta às convicções republicanas.
*Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"
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