Valor Econômico
Quando o Banco Central insiste em manter
juros extraordinariamente altos, além dos males conhecidos, agrava o
desequilíbrio das contas públicas que ele tanto critica
Há unanimidade quanto aos malefícios dos
juros altos. Ninguém gosta. Todos, até o nosso Banco Central, que atualmente
detém o recorde mundial de juro real, reconhecem os problemas que podem causar.
A razão alegada para manter os juros extraordinariamente elevados é que seria
necessário para controlar a inflação e trazê-la de volta para a meta.
Sustenta-se, também, que embora determine a taxa de curto prazo, mesmo se
quisesse, o Banco Central seria impotente para reverter o quadro de juros
altos. As taxas mais longas seriam determinadas pelo mercado, com base nas
expectativas de inflação e na pressão exercida pela necessidade de
financiamento do Estado.
Estes dois argumentos são questionáveis.
Juros altos são efetivamente necessários e
eficazes para o controle da inflação? Até o final do século passado, havia um
relativo consenso de que uma inflação moderada de um dígito, numa economia sem
mecanismos estabelecidos de indexação, poderia ser combatida com o
desaquecimento da economia e o aumento do desemprego. A maneira mais rápida e
eficaz de desaquecer a economia era elevar da taxa de juros, que desde os anos
1990 é reconhecidamente a principal variável de política monetária. A alta dos
juros reduziria o consumo e o investimento, com demanda mais fraca, o mercado
de trabalho ficaria desaquecido, o ritmo do aumento dos salários seria reduzido
e a inflação contida. Essa é a lógica por trás da Curva de Phillips, uma
relação empírica que associava o aumento do desemprego à redução da inflação.
A controvérsia em torno da possibilidade de
que esse “trade-off” pudesse ser explorado para reduzir o desemprego com um
pequeno aumento da inflação terminou com a incontestável vitória dos céticos.
No entanto, a tese de que o aumento do desemprego reduziria a inflação, que o
desaquecimento da economia modera a inflação, continua a ser parte central do
quadro conceitual da macroeconomia convencional. Nas últimas duas décadas, a
Curva de Phillips se tornou praticamente horizontal, ou seja, a inflação ficou
menos sensível ao desemprego. Entre as explicações possíveis, a mais plausível
é que o emprego formal perdeu importância, os sindicatos se enfraqueceram e os
salários já não são mais tão relevantes na formação de preços. A resiliência da
inflação pós-pandemia, no mundo todo, deveria ter deixado definitivamente claro
que juros são bem menos eficazes do que se pretende no controle da inflação.
Não estamos aqui falando de processos inflacionários crônicos, como o
brasileiro da segunda metade do século XX, que, se pudessem ser combatidos com
juros altos, não teriam exigido um Plano Real, mas de uma inflação moderada,
como a que temos hoje aqui e em grande parte do mundo.
Artigo de Alex Ribeiro, de 22 de maio,
neste Valor, a propósito
do seminário internacional promovido pelo BC, em São Paulo, reporta que Campos
Neto perguntou a outros banqueiros centrais presentes por que, em várias partes
do mundo, apesar de os juros subirem tanto, a atividade econômica e a inflação
resistem. A pergunta é sinal de uma certa perplexidade diante do descompasso
entre a teoria dominante e a prática. Ora, se há perplexidade em face da
evidência da ineficácia e unanimidade sobre os efeitos colaterais do remédio,
por que então insistir na aplicação de doses maciças? A resposta nos remete à
suposta incapacidade de o Banco Central reduzir os juros. Argumenta-se que se o
BC reduzisse a taxa básica com as expectativas “desancoradas”, o tiro sairia
pela culatra e as taxas longas se elevariam.
No Valor, em 8 de março, publiquei um artigo onde
sustento que a taxa básica fixada pelo Banco Central é a principal determinante
de toda a estrutura a termo das taxas de juros. Apresentei como evidência um
gráfico do Tesouro Nacional, com a trajetória da taxa Selic, o custo médio das
emissões em oferta pública e o custo do estoque da dívida para o período entre
2011 e 2022. Afirmei que, como se pode constatar a olho nu, o custo médio das
emissões e do estoque da dívida acompanha a Selic. Existe uma alta correlação
entre eles. Fiz o “disclaimer” de que correlação não significa necessariamente
causalidade, mas que, nesse caso, não há dúvida, pois a taxa Selic é
instrumento do BC, a variável independente, e o custo da dívida, o resultado, a
variável dependente.
Duas semanas depois, em 31/3/2023, Garcia e
Cardoso, também no Valor,
chamam o meu artigo de “instigante”, mas curiosamente não citam o autor. Tentam
contestar a tese de que o BC controla os juros. Utilizando dados para um
período mais curto, entre 2019 e 2021, sustentam que quando o BC deu início a
um ciclo de baixa dos juros até chegar a 2% ao ano, as taxas dos títulos de 4 e
10 anos não acompanharam a queda da Selic. Afirmam que o fato do custo do
estoque da dívida acompanhar a taxa básica é devido a que parte expressiva da
dívida, pouco mais de 40%, composta pelas LFTs e pelas Operações
Compromissadas, está vinculada à Selic, mas que a correlação entre o custo da
dívida e a taxa básica não significa que o BC tenha influência significativa
sobre a curva dos juros.
O argumento procede: a redução da taxa
básica pode reduzir o custo da dívida, dado que grande parte dela é vinculada à
Selic, sem que isso signifique que a redução da taxa básica implique redução de
toda a curva e em particular das taxas mais longas. Ainda assim, a redução do
custo da dívida reduziria o déficit nominal e a necessidade de financiamento do
Estado, com efeito positivo sobre as expectativas. É verdade, como afirmei, que
quando a redução da taxa básica é percebida como artificial e possivelmente insustentável,
como foi o caso da redução do BC de Tombini, a taxa longa se reduz
proporcionalmente menos, levando a curva de juros a ficar mais inclinada. Ainda
assim, quando o BC reduz a taxa básica, como se pode observar com os dados da
curva de juros das últimas duas décadas disponíveis na Bloomberg, toda a curva
se desloca para baixo. Assim como ocorreu no período de Tombini, a redução da
taxa básica para 2% a.a. durante a pandemia foi percebida como excepcional e
transitória. Por isso, a taxa longa não acompanhou na mesma proporção a queda
da taxa curta.
Dois interlocutores que tenho em alta conta
entendem que a alta da taxa básica eleva o custo da dívida e agrava o
desequilíbrio fiscal, mas argumentam que é preciso mais do que um gráfico, com
a evidente correlação entre a taxa básica e o custo da dívida, para contestar a
tese de que o BC não controla a curva de juros. É exatamente isso o que faz
Simon Simoski, em “A Keynesian Exploration of the Determinants of Government
Bond Yields for Brazil, Colombia and Mexico”, numa tese de 2019, para o Levy
Institute do Bard College, em NY.
Num trabalho cuidadoso, ele utiliza as mais
modernas técnicas estatísticas para estimativas de correlações entre séries
temporais, para verificar se, como sustentava Keynes, são os BCs, através das
taxas de curto prazo, que determinam as taxas de longo prazo. Revisita a
crítica de Keynes à teoria dos “loanable funds”, dos fundos emprestáveis,
segundo a qual a taxa de juros é determinada pela oferta e a demanda de
crédito. Para Keynes, é o Banco Central quem determina a taxa de juros no
mercado monetário. Após examinar as evidências para os três países, Brasil,
Colômbia e México, conclui que o Banco Central tem efetivamente controle da
taxa longa. Como já fora demonstrado para o Japão, os EUA, a Índia e os países
europeus, numa série de trabalhos de Tanweer Akram e outros, a partir de 2014,
o coeficiente de correlação entre a taxa curta e a taxa longa, dos títulos de
10 anos, está em torno de 70%. Ou seja, uma variação de 1% na taxa de curto
prazo implica uma variação de 0,70%, na mesma direção, na taxa longa. Para
Brasil, encontra um coeficiente de correlação de 71,2% entre a taxa curta e a
do título de 10 anos. Portanto, é o Banco Central através da taxa básica, e não
o mercado e as expectativas, o principal determinante das taxas longas.
Este não é o lugar para fazer uma resenha
detalhada do trabalho de Simoski, mas recomendo enfaticamente que, ao menos os
mais afeitos à discussão teórica e à evidência econométrica, não deixem de ler
com atenção sua tese. O tema é da mais alta importância prática quando se
discute o regime fiscal e as condições para a convergência e a redução da
relação dívida/PIB. É urgente compreender que uma taxa de juros razoável - e
por razoável deve-se entender uma taxa nominal superior à meta de inflação e
inferior à taxa de crescimento nominal do PIB potencial - é a base de uma
política macroeconômica competente, da qual estamos carentes há muitos anos.
Um regime fiscal responsável deve ter por
base uma política de juros que só excepcionalmente se desvie desse intervalo.
Como parece ter sido finalmente entendido no Brasil, as políticas monetária e
fiscal são indissociáveis. O que ainda falta ser assimilado é que a política de
juros altos tem implicações fiscais que não podem ser desconsideradas. Quando o
Banco Central insiste em manter juros extraordinariamente altos, além dos males
conhecidos, agrava o desequilíbrio das contas públicas que ele tanto critica.
*André Lara Resende é economista
Um comentário:
Fiz uma respeitosa leitura deste artigo do economista André Lara Rezende. Da leitura que fiz, minha primeira conclusão é de que se trata de uma especulação teórica:: ▪para pensar, André Lara utiliza dados macroeconômicos do Brasil. Procurei no artigo alguma menção de aplicação concreta das ideias da Teoria Econômica Moderna (MMT) que ele defende; não encontrei. E desconheço qualquer experiência concreta de aplicação da MMT.
▪Se alguém tem conhecimento do uso dessa teoria por Banco Central de algum país, gostaria que fizesse a gentileza de me informar.
▪E, se confirma o que constato, de não haver uso concreto da MMT, por que a insisténcia de André Lara em que nosso Banco Central a aplique de forma experimental, se é que é mesmo experimental, como penso que é?
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