Eu & / Valor Econômico
Frequentador de estádio é personagem da
sociedade de consumo. Ele julga comprar o jogador ao comprar o ingresso e não
raro age como comprador do direito de consumir o jogador.
A deplorável demonstração de racismo de
torcedores espanhóis contra o jogador brasileiro Vinicius Júnior, do Real
Madrid, no último dia 21 na disputa contra o Valência - o vencedor -, não fica
bem analisada e interpretada se reduzida à questão do preconceito nos estádios
de futebol.
A questão é, sociologicamente, bem mais
complicada. O futebol não teria se transformado em grande empreendimento
econômico e mesmo político se não tivesse sido incorporado ao sistema de
multiplicação da riqueza. Substituiu pelo conflito tópico e efêmero das
partidas o conflito estrutural da luta de classes.
Ao se transformar em negócio, o futebol foi banalizado e destituído do seu caráter propriamente esportivo. Ficou vulnerável à concorrência em lugar da disputa.
Tornou-se o mais massificado dos esportes.
Saiu do gramado da disputa entre 2 times de 11 jogadores, que se tornaram
atores secundários em face da multidão das arquibancadas. É nas arquibancadas
que o jogo é jogado. O jogo já não é nem mesmo o verdadeiro confronto
esportivo. Outras motivações conflitivas dirigem muito do que acontece no
desenrolar de uma partida.
No futebol de hoje o verdadeiro jogo é
invisível. Os do gramado são cada vez mais coadjuvantes de um enredo de
invisibilidades, de uma trama de interesses que são outros, bem diversos dos do
espetáculo de beleza esportiva, de esporte criativo, de obra de arte.
O futebol revelou talentos ocultos do homem
simples, do operário, do índio, do negro. Revelou-se instrumento de
robustecimento da democracia nascente. Justamente por isso não é estranho que
essa democracia da diversidade esteja sendo combatida nos estádios de futebol
pelo racismo e pela violência do confronto entre torcidas. Expressam a
intolerância à diferença e à pluralidade, ao que é próprio da cultura
democrática. Num país como este, uma singularidade notável.
Essa conflitividade, embora patológica, não
é anômala. O futebol foi capturado pela necessidade política de
institucionalizar o conflito social próprio do advento da sociedade industrial
e moderna. Ganhou sentido como instrumento de controle social em face do
crescimento do protagonismo, fora de controle, da classe operária e da
centralidade da luta de classes na estruturação da nova sociedade criada pela
industrialização. A história do futebol é a história da invenção de técnicas
sociais de neutralização e direcionamento de tensões. Isso não lhe tira a
beleza. Apenas o enfeia e dele faz expressão de contradições sociais.
É que há outros problemas por trás de
manifestações como aquela contra o jogador brasileiro. Se a variedade de causas
e de determinações do ódio pós-moderno, como o que vitimou Vinicius Júnior, não
forem consideradas, dificilmente será possível desenvolver técnicas sociais de
contenção ou controle dos efeitos antissociais do que na verdade são carências
e frustrações. As de uma sociedade que foi considerada monopólio de brancos. E
por isso trata o negro como um usurpador de oportunidades sociais cada vez mais
escassas, como a dos jogadores negros, ricos e de sucesso.
Nesta sociedade, que é de fato de classes, o
futebol ganhou funções sociais alienativas, gerou ilusões de ascensão social,
real para poucos, impossível para a maioria dos torcedores de futebol. Deu
forma antissocial a um cotidiano de impossibilidades. A violência física e
simbólica nos estádios deforma o conflito social próprio da sociedade de
classes, perde a legitimidade não tolerada de um direito social para ser mera
delinquência tolerada.
O racismo nos estádios de futebol é um modo
de contestar e repudiar uma das características mais importantes da sociedade
moderna: a diferença como atributo pessoal e um direito da pessoa. Mas não é a
raça nem a cor que vem em primeiro lugar para motivar a violência racial, em
casos como este, contra o negro. É a trama dos fatores sociais invisíveis da
discriminação e da intolerância que decorrem da desigualdade social e dos seus
êxitos diferenciais.
No futebol, tanto na Espanha quanto no
Brasil, o ódio racial nos estádios é o do branco ressentido contra os negros
vitoriosos que superaram a condição social adversa da pobreza a eles imputada e
se tornaram ricos e famosos. Os brancos querem deles os seus gols, mas não os
querem como pessoas e iguais. Chamá-los lá de “monos” e, aqui, de “macacos” é
reviver concepções do tempo da escravidão, de dúvidas sobre a condição humana
do escravo.
O frequentador de estádios é personagem da
sociedade de consumo. Ele julga comprar o desempenho do jogador ao comprar o
ingresso. Não raro age como comprador do direito de consumir o jogador. Esse
racismo é isso: consumo covarde do atleta pelo torcedor.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “As duas mortes de Francisca Júlia - A Semana de Arte Moderna antes da semana” (Editora Unesp, 2022).
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