Para o cientista político Sergio Fausto, a democracia não avançou com o episódio
Por Ricardo Mendonça / Valor Econômico
Para o cientista político Sergio Fausto, diretor
geral da Fundação Fernando Henrique Cardoso, junho de 2013 foi um movimento
inédito na história do país, pode ser considerado “um divisor de águas” na
política, mas não conseguiu produzir mudança institucional capaz de melhorar a
qualidade do Estado brasileiro.
O sistema político não conseguiu
interpretar as aspirações de 2013 e não ofereceu resposta, diz. Na sequência, a
Lava-Jato começou como algo positivo, mas depois “degenerou” o combate à
corrupção num “processo de justiçamento politicamente orientado”.
À sua maneira, de um “modo destrutivo”, o
então deputado Jair Bolsonaro acabou sendo o único capaz de traduzir
eleitoralmente o que havia brotado nas ruas e virou presidente. O movimento,
com isso, desaguou no bolsonarismo.
"Justamente porque não houve mudança do
sistema político é que acabou prevalecendo Bolsonaro”
A seguir os principais pontos da entrevista ao Valor:
Efeito mensalão
“Junho de 2013 foi um curto-circuito. É a imagem da uma panela de pressão:
houve uma liberação da pressão interna, explodiu. Eu acho que o principal
gatilho daquele processo é o fato pouco lembrado de que, ao longo de 2012 e até
o início de 2013, o país foi exposto pela TV, em particular pelo canal da
Justiça, ao julgamento do mensalão. Nunca antes na história, por um período tão
prolongado, mas num alto nível de concentração, o público foi exposto a
revelações sobre a maneira pela qual política era financiada. Há outros
fatores, mas eu acho que esse é um gatilho fundamental para entender aquela
explosão.”
Copa do Mundo
“Outro gatilho é o fato que o país passou a gastar dinheiro público na construção
dos estádios da Copa. São esses dois slogans que dão a chave para a compreensão
das manifestações: ‘Vocês não nos representam’ e o pedido ‘queremos saúde
padrão Fifa’.”
Jair Bolsonaro
“Era uma manifestação contra a política, sem pauta clara de reivindicações e
sem liderança. Era muito difusa. Mas o que galvanizava, unificava, era o
rechaço à política, aos partidos, ao Congresso, aos políticos. Quem soube de
fato canalizar esse sentimento meio desgovernado foi o Bolsonaro. Quem
eleitoralmente traduziu esse sentimento foi o Bolsonaro. O único que soube, a
seu modo - e a meu juízo, de um modo muito destrutivo -, captar a mensagem de
2013 e dar uma resposta foi o Bolsonaro. Uma resposta de qualidade muito ruim.
Mas só ele. O conjunto do sistema político foi interpelado e não deu resposta
alguma.”
Ineditismo
“A única coisa que me aparece na lembrança com alguma similaridade é a reação
popular ao suicídio de Getúlio, em 1954, o que impede um 1964 antecipado
[golpe]. Mas não tem a mesma dimensão. E não era uma manifestação antipolítica.
Era contra uma coalizão de forças, que reunia UDN, civis e militares, sobretudo
brigadeiros da Aeronáutica, sob a liderança do Carlos Lacerda, e naquele
contexto da chamada República do Galeão. Eles encurralaram o governo Getúlio
Vargas. Acho que junho de 2013 foi mesmo algo inédito na história do país.
Todas as outras grandes manifestações tiveram alguma liderança.”
Curto-circuito, terremoto
“Nos anos 90, o [ex-presidente] Fernando Henrique, talvez influenciado pelo que
havia visto em 1968 na França, já dizia que quando você tem sociedades
complexas, de repente ela entra em curto-circuito. Uma grande ebulição que
ninguém conseguiu prever. A metáfora do terremoto serve bem. Terremotos são
assim: você sabe que virão, mas não sabe quando, como e com qual intensidade.”
Teorias
“A teoria mais fraca para explicar aquilo é a do surgimento de uma nova
esquerda pós-PT. O contexto se dá numa sociedade que havia avançado muito na
aquisição de bens de consumo - a renda tinha melhorado, as condições de
crédito, também -, mas a oferta de serviços públicos não havia acompanhado. Mas
isso é um contexto, não explica a explosão. Defasagem em serviços públicos pode
gerar pressão, insatisfação, mas numa perspectiva gradualista.”
Crise de representação
“O [filósofo] Marcos Nobre aponta um caminho mais importante para explicar 2013
quando fala em crise no sistema de representação. É aquilo que foi verbalizado
no slogan ‘Vocês não nos representam’. É rechaço. Um sentimento de indignação
que de repente surge.”
Dilma Rousseff
“Dilma tinha muita popularidade até aquele momento. Lula havia encerrado seu
mandato [em 2010] num patamar de popularidade impressionante. Apesar disso, tem
aquele fenômeno. Então isso é surpreendente. A compreensão sobre 2013 ainda
está em disputa. É um fato recente, foi um divisor de águas na política
brasileira.”
Outros caminhos
“Junho de 2013 abriu um cardápio grande de possibilidades. Bolsonaro não era o
único caminho. Poderia ter havido uma mudança mais profunda do sistema
político. Acho que é possível dizer que justamente porque não houve uma mudança
significativa do sistema político é que acabou prevalecendo Bolsonaro.”
Junho derrotado
“Não tinha agenda clara, mas tinha duas mensagens difusas que expressavam as
aspirações: ‘esses partidos não nos representam’ e ‘esse Estado que está aí não
nos entrega serviços públicos à altura’. Duas consciências. Uma do cidadão,
outra do pagador de impostos. Quando isso ocorre, cabe às lideranças políticas
transformar as mensagens em mudanças institucionais, em políticas públicas
concretas. Não ocorreu. Nisso, o movimento de junho de 2013 fracassou.”
Sem resposta
“Como o sistema político foi incapaz de dar uma resposta, o preço que pagamos
foi o bolsonarismo. O que prevaleceu então foi o ‘vamos destruir’. Bolsonaro
verbalizou isso com clareza. E o destruir incluiu a ideia de destruir o
funcionamento democrático da sociedade. Então 2013 foi legítimo, mas a
derivação política que 2013 encontrou foi algo feio.”
Lava-Jato
“O anseio pelo combate à corrupção, tarefa fundamental para consolidar um
Estado mais eficiente, surgiu após 2013 como uma novidade positiva, a Lava-Jato.
Mas ela se degenerou num processo de justiçamento politicamente orientado. A
Lava-Jato se perdeu ao longo do caminho e isso gerou enorme decepção no
conjunto da sociedade. Um episódio sintetiza: Quando o Sergio Moro aceitou ser
ministro do Bolsonaro, ele assinou o atestado de óbito da legitimidade do
combate à corrupção tal como havia transcorrido desde 2014.”
Acontecer novamente
“A insatisfação com o sistema político e com a entrega do Estado continua
elevada. E aquele ânimo despertado pela Operação Lava-Jato se esvaiu. O
resultado é que você tem hoje uma sociedade mais cética. As condições gerais
que explicam 2013 não foram fundamentalmente alteradas. Portanto, o risco de
ocorrer novamente está posto. Isso não significa que vá acontecer de imediato.”
Legado
“Não teria ocorrido Lava-Jato sem 2013. Porque, como resposta aos protestos,
houve uma modificação legislativa que permitiu a operação: o instituto da
delação premiada, definido com maior clareza. Só que a Lava-Jato, a rigor, não
produziu mudança institucional duradoura. Ela produziu enorme chacoalhão e
depois degenerou o processo. É óbvio que apurou crimes, não era invenção. Mas a
maneira pela qual ela foi conduzida acabou por desmoralizá-la. Então 2013 não
produziu mudança institucional positiva que melhorasse a qualidade do Estado
brasileiro e a qualidade da democracia.”
Comportamento do governo
“Eu não isolaria o governo Dilma para uma análise. O governo tomou um enorme
susto. Aí surgiu com uma proposta estapafúrdia de convocação de uma Assembleia
Constituinte para fazer reforma política. Mas isso fica na categoria daquelas
ideias mal pensadas que, na verdade, refletem mais um susto do governo do que
propriamente uma iniciativa. Logo voltaram atrás. E depois adotou medidas
importantes para dar mais ferramentas para atuação contra o crime organizado.
Então acho que o governo não se saiu necessariamente mal. Mas acho que seria um
problema isolar a análise ao governo. O sistema político, no seu conjunto, é
que foi desafiado e que deveria ter feito algo.”
Financiamento da política
“O sistema político deveria reagir assim: ‘Olha, a maneira pela qual nós
estamos financiando a política deslegitima a política. Não é mais possível
fazer desse jeito. Nem mais de forma disfarçada, isso veio a público. Temos que
construir uma outra forma de financiamento’. Mas isso não ocorreu. Verdade seja
dita, por linhas tortas, por ação do Judiciário, o financiamento de campanhas e
partidos por parte de pessoa jurídica foi proibido. Então daria para dizer que
esse é algum legado, voltando atrás daquilo que eu disse. Mas isso, assim como
a Lava-Jato, é muito insuficiente. Os partidos continuam sendo controlados por
oligarquias, não há democracia interna e, para abusar do inglês, não há
‘accountability’ na gestão dos recursos. Também não houve evolução no processo
orçamentário e nem na entrega do serviço público. Aquelas aspirações difusas
que apareceram em 2013 não encontraram bons intérpretes nem vontade de
transformá-las em reformas concretas. O que aconteceu foi o bolsonarismo.”
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