Valor Econômico
Debate sobre consequências das
manifestações de dez anos atrás não fechou até agora
Exatamente em 2 de junho de 2013, entrava
em vigor o aumento de tarifa de transporte urbano em São Paulo, mote para a
eclosão das chamadas jornadas de junho. A explosão de insatisfação popular teve
início no dia 6, com manifestações organizadas na capital paulista. Há um
consenso na sociedade em relação ao assombro: ninguém esperava por aquilo, na
dimensão e na extensão que os fatos se deram.
Qual a consequência daquilo tudo? Esse é um
debate sem respostas até agora. Considerando tudo que aconteceu depois, é
tentador estabelecer uma relação causal entre junho de 2013 e a instabilidade
política que se seguiu no país. Um verbalizador dessa teoria da causalidade
suprema, por exemplo, é o ex-ministro da Justiça do governo Dilma, José Eduardo
Cardozo.
“Se não tivéssemos tido 2013, não teríamos a queda de popularidade do governo, a eleição de 2014 daquela forma, o impeachment de Dilma Rousseff. Não teríamos tido um desequilíbrio político e econômico como aconteceu naquele período. Nós não teríamos tido um governo Temer, não teríamos tido a prisão de Lula. Tudo é uma consequência desse processo, que desemboca em Jair Bolsonaro [2018]”. “Tem uma timeline claríssima entre o 13 de junho de 2013 e o 8 de janeiro de 2023. Foi a ponta do iceberg do bolsonarismo”, diz outro vocalizador, o marqueteiro João Santana.
O raciocínio geral é sedutor. Eis uma
hipótese difícil tanto de testar quanto de refutar, porque o contrafactual não
existe. Há sempre o risco, ao se embarcar nesta tese, de se comprar uma
engenharia de obra feita.
Uma dificuldade inicial em se aceitá-la é a
do viés ideológico. As manifestações contra aumento da tarifa pública tiveram
origem na esquerda, e não na direita. A violência dos “black blocs” que
degenerava em depredações idem. O sentimento antipartidos era muito forte entre
os que protestavam, mas integrantes do PT tentaram da forma que puderam surfar
na onda.
As dissidências internas que sempre
existiram no PT podem explicar um certo grau de “fogo amigo” entre a base
militante do partido, sobretudo na juventude, e o governo do então prefeito
paulistano Fernando Haddad.
Com esse DNA esquerdista, a tese da
causalidade que desemboca em Bolsonaro necessitaria portanto reconhecer uma
apropriação do movimento. Teria havido um “sequestro de bandeiras”, sobretudo depois
do dia 13 de junho, quando as manifestações ganharam escala nacional. É fato
que depois dessa data crescem as convocatórias de protestos contra a corrupção,
sobretudo relacionada às obras para a Copa do Mundo de 2014.
A análise de eventos laterais, que
aconteciam naquele inverno do descontentamento, dão argumentos a essa
suposição. Existia uma efervescência conservadora. Conforme relata a jornalista
Consuelo Dieguez no livro “O Ovo da Serpente”, uma manifestação de evangélicos
reuniu 40 mil pessoas em Brasília, no dia 5 de junho, véspera do grande ato
pelo passe livre em São Paulo. No palanque, estavam os deputados Marcos
Feliciano e Jair Bolsonaro. Foi lá que o futuro presidente cunhou o bordão
“Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. A bandeira na ocasião era a
mobilização contra o projeto que criminalizava a homofobia, já aprovado na
Câmara e pronto para exame no Senado. O projeto jamais seria votado.
O furacão da Lava-Jato ainda estava
distante, mas não muito: segundo o deputado Deltan Dallagnol escreveu no seu
livro “A Luta contra a Corrupção”, foi em 11 de julho de 2013, quando as ruas
ainda estavam em ebulição, que o delegado da Polícia Federal Márcio Anselmo
obteve do juiz da 13ª Vara Federal Sergio Moro a interceptação telefônica de um
doleiro dono de um posto de gasolina em Brasília.
Nem tudo estava fora do radar. Mesmo
especialistas que assistiam perplexos aos acontecimentos consideraram que os
eventos de junho de 2013 poderiam ser capitalizados pelo extremismo. Se há algo
que não fica em pé é de que houve um raio em céu azul. Em um debate no
Instituto de Estudos Avançados (IEA) em 21 de junho daquele ano, o jornal
“Folha de S.Paulo” registrou que a pesquisadora Lúcia Maciel de Oliveira, da
ECA-USP afirmou existir “uma guinada conservadora bastante preocupante”. O
cientista político Vladimir Safatle, filiado ao Psol, previu: “Não haverá mais
política como conhecemos até agora. Daqui para frente, ela irá em direção aos
extremos”. Na mesma edição, em entrevista, o ex-presidente Fernando Henrique
Cardoso comentava: “Tenho dúvidas se os partidos vão ter capacidade de
capitalizar. [As manifestações] não são expressões de camadas organizadas”.
Dias depois, Haddad em entrevista
constatou: “Tem um povo apartidário na rua, e é de esquerda e de direita. Tem
uma disputa. E tem gente que, conhecendo o perfil conservador da sociedade
brasileira, teme pelo pior”. Para o então prefeito, “as bandeiras conservadoras
ganharam expressão fora do período eleitoral”.
Em resumo, o fortalecimento da
extrema-direita era um cenário plausível há dez anos. Também não se descartava
o fortalecimento de uma esquerda insurgente. O que permite pensar que o
fortalecimento do extremismo antecedeu junho de 2013. Apostar em junho de 2013
como hipótese explicativa para tudo que veio depois pode levar a uma armadilha:
a de não se perceber que no fluxo da história “marco zero” é licença poética.
Além de, em certa maneira, eximir atores políticos do peso das escolhas que
fizeram durante os eventos que protagonizaram. Quem cumpre desígnio deixa de
ser responsável.
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