sexta-feira, 2 de junho de 2023

César Felício - Junho de 2013 é a explicação para tudo?

Valor Econômico

Debate sobre consequências das manifestações de dez anos atrás não fechou até agora

Exatamente em 2 de junho de 2013, entrava em vigor o aumento de tarifa de transporte urbano em São Paulo, mote para a eclosão das chamadas jornadas de junho. A explosão de insatisfação popular teve início no dia 6, com manifestações organizadas na capital paulista. Há um consenso na sociedade em relação ao assombro: ninguém esperava por aquilo, na dimensão e na extensão que os fatos se deram.

Qual a consequência daquilo tudo? Esse é um debate sem respostas até agora. Considerando tudo que aconteceu depois, é tentador estabelecer uma relação causal entre junho de 2013 e a instabilidade política que se seguiu no país. Um verbalizador dessa teoria da causalidade suprema, por exemplo, é o ex-ministro da Justiça do governo Dilma, José Eduardo Cardozo.

“Se não tivéssemos tido 2013, não teríamos a queda de popularidade do governo, a eleição de 2014 daquela forma, o impeachment de Dilma Rousseff. Não teríamos tido um desequilíbrio político e econômico como aconteceu naquele período. Nós não teríamos tido um governo Temer, não teríamos tido a prisão de Lula. Tudo é uma consequência desse processo, que desemboca em Jair Bolsonaro [2018]”. “Tem uma timeline claríssima entre o 13 de junho de 2013 e o 8 de janeiro de 2023. Foi a ponta do iceberg do bolsonarismo”, diz outro vocalizador, o marqueteiro João Santana.

O raciocínio geral é sedutor. Eis uma hipótese difícil tanto de testar quanto de refutar, porque o contrafactual não existe. Há sempre o risco, ao se embarcar nesta tese, de se comprar uma engenharia de obra feita.

Uma dificuldade inicial em se aceitá-la é a do viés ideológico. As manifestações contra aumento da tarifa pública tiveram origem na esquerda, e não na direita. A violência dos “black blocs” que degenerava em depredações idem. O sentimento antipartidos era muito forte entre os que protestavam, mas integrantes do PT tentaram da forma que puderam surfar na onda.

As dissidências internas que sempre existiram no PT podem explicar um certo grau de “fogo amigo” entre a base militante do partido, sobretudo na juventude, e o governo do então prefeito paulistano Fernando Haddad.

Com esse DNA esquerdista, a tese da causalidade que desemboca em Bolsonaro necessitaria portanto reconhecer uma apropriação do movimento. Teria havido um “sequestro de bandeiras”, sobretudo depois do dia 13 de junho, quando as manifestações ganharam escala nacional. É fato que depois dessa data crescem as convocatórias de protestos contra a corrupção, sobretudo relacionada às obras para a Copa do Mundo de 2014.

A análise de eventos laterais, que aconteciam naquele inverno do descontentamento, dão argumentos a essa suposição. Existia uma efervescência conservadora. Conforme relata a jornalista Consuelo Dieguez no livro “O Ovo da Serpente”, uma manifestação de evangélicos reuniu 40 mil pessoas em Brasília, no dia 5 de junho, véspera do grande ato pelo passe livre em São Paulo. No palanque, estavam os deputados Marcos Feliciano e Jair Bolsonaro. Foi lá que o futuro presidente cunhou o bordão “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. A bandeira na ocasião era a mobilização contra o projeto que criminalizava a homofobia, já aprovado na Câmara e pronto para exame no Senado. O projeto jamais seria votado.

O furacão da Lava-Jato ainda estava distante, mas não muito: segundo o deputado Deltan Dallagnol escreveu no seu livro “A Luta contra a Corrupção”, foi em 11 de julho de 2013, quando as ruas ainda estavam em ebulição, que o delegado da Polícia Federal Márcio Anselmo obteve do juiz da 13ª Vara Federal Sergio Moro a interceptação telefônica de um doleiro dono de um posto de gasolina em Brasília.

Nem tudo estava fora do radar. Mesmo especialistas que assistiam perplexos aos acontecimentos consideraram que os eventos de junho de 2013 poderiam ser capitalizados pelo extremismo. Se há algo que não fica em pé é de que houve um raio em céu azul. Em um debate no Instituto de Estudos Avançados (IEA) em 21 de junho daquele ano, o jornal “Folha de S.Paulo” registrou que a pesquisadora Lúcia Maciel de Oliveira, da ECA-USP afirmou existir “uma guinada conservadora bastante preocupante”. O cientista político Vladimir Safatle, filiado ao Psol, previu: “Não haverá mais política como conhecemos até agora. Daqui para frente, ela irá em direção aos extremos”. Na mesma edição, em entrevista, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso comentava: “Tenho dúvidas se os partidos vão ter capacidade de capitalizar. [As manifestações] não são expressões de camadas organizadas”.

Dias depois, Haddad em entrevista constatou: “Tem um povo apartidário na rua, e é de esquerda e de direita. Tem uma disputa. E tem gente que, conhecendo o perfil conservador da sociedade brasileira, teme pelo pior”. Para o então prefeito, “as bandeiras conservadoras ganharam expressão fora do período eleitoral”.

Em resumo, o fortalecimento da extrema-direita era um cenário plausível há dez anos. Também não se descartava o fortalecimento de uma esquerda insurgente. O que permite pensar que o fortalecimento do extremismo antecedeu junho de 2013. Apostar em junho de 2013 como hipótese explicativa para tudo que veio depois pode levar a uma armadilha: a de não se perceber que no fluxo da história “marco zero” é licença poética. Além de, em certa maneira, eximir atores políticos do peso das escolhas que fizeram durante os eventos que protagonizaram. Quem cumpre desígnio deixa de ser responsável.

 

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