O Estado de S. Paulo
É preciso reconhecer que há estrada a percorrer antes que se possa constatar, com serena confiança, o amadurecimento democrático das forças fundamentais da esquerda brasileira
Há longos 60 anos, a rememoração dos “idos de
março” tem atormentado a memória e pesado como capa de chumbo sobre os pósteros
e os cada vez mais raros sobreviventes. Culpa irremissível – dirão – da
conciliação em torno da anistia ou da obediência aos ditames da abertura tal
como formulada por próceres da ditadura. Como se sabe, na sua formulação
original, ela deveria ser “lenta, segura e gradual”, numa espécie de retirada
ordenada que estrategicamente sempre constitui feito de notável valor para os
que estão na defensiva.
O fato é que mesmo quem discorda, no todo ou em parte, desta avaliação negativa do processo de abertura, afirmando ao contrário que foi muito além da intenção daqueles próceres, não consegue por vezes esconder certo desconforto. É como se fatos e personagens de outro tempo se recusassem teimosamente a deixar o terreno da política para passarem à História, âmbito no qual os dramas, sem ser cancelados, admitem tratamento analítico, se não menos apaixonado, pelo menos mais rigoroso. Vigoraria também em nosso contexto a intuição poética de um William Faulkner, pela qual, na verdade, o passado nunca está morto e nem sequer é passado.
Historicamente, 1964 não é propriamente um
raio em céu azul. Luiz Werneck Vianna, um dos seus mais destacados intérpretes,
entende aquela data – e os 20 anos de autoritarismo que se seguiram – como uma
espécie de repetição de 1937. Pela segunda vez numa geração ou pouco mais, com
a breve interrupção do regime liberal de 1946, a implantação do capitalismo
entre nós requeria os mecanismos coercitivos próprios da “modernização
conservadora”. Antigas elites agrárias e modernos capitães de indústria
associavam-se para promover o desenvolvimento acelerado das forças produtivas,
sob a tutela, em ambos os casos, de um Estado fraco com os fortes e forte com
os fracos. E, naturalmente, tal pacto vedava a livre movimentação dos
“subalternos” e das suas formas de representação políticas e sindicais.
Neste tipo de análise não há estagnação, mas
progresso material, ainda que desequilibrado, e mesmo democratização social,
com a redefinição de classes e da própria estrutura produtiva. Com uma
diferença, segundo Werneck Vianna. Em 1937, o padrão de dominação era
sistêmico, “europeu”. O corporativismo do Estado Novo incorporava os de baixo e
assinalava-lhes um lugar no mundo, ainda que controlado. Em 1964, o padrão
consistiu numa forma degradada de “americanismo”: importava o crescimento a
toque de caixa, e mais nada. A partir daí se seguiriam automaticamente novas
formas de sociabilidade e organização política, quando o que se colhia, na
verdade, era um fruto podre: uma sociedade civil desorganizada e atravessada
por manifestações selvagens de individualismo. (O curto e denso texto do
sociólogo está em 1964 – as armas da política e a ilusão armada, organizado por
Caetano Araújo, Brasília, Fundação Astrojildo Pereira, 2014.)
Conservadora, mas moderna; nada feudal ou
semifeudal, mas plenamente capitalista – eis a sociedade com que afinal se
defrontavam as forças oposicionistas, inclusive as de esquerda. Estas últimas
se viram diante de duas táticas possíveis na resistência. Se fechassem os olhos
para a modernização, repetiriam, elas também, o roteiro anti-imperialista,
“nacional-libertador”, da década de 1930. Um anacronismo que levaria à luta
armada, a exemplo da rebelião de 1935, com sérias consequências para si mesmas
e o País. Se assimilassem a realidade que desabrochava “violentamente”, as
esquerdas encetariam o caminho da frente democrática, colocando-se como
agentes, entre muitos outros, de reordenamento e reativação de uma sociedade
civil progressivamente menos inorgânica, capaz de condicionar em sentido
positivo a reconstrução da própria sociedade política.
O passado talvez não passe mesmo, como queria
Faulkner e como subscreveria, entre outros saberes, a psicanálise. Podemos
reiterar o argumento, desenvolvendo-o de outra maneira. A frente democrática
dos anos de chumbo, corporificada em conquistas inestimáveis como a
Constituição de 1988, desdobra-se ainda hoje, basicamente, numa aliança
estratégica com os liberais e a considerável parte dos conservadores que
resiste à maré montante do subversivismo elementar dos radicais de extrema
direita.
Já se apontou com razão o peso decisivo deste
tipo de aliança no desfecho do processo eleitoral de 2022, bem como o seguro
por ele oferecido contra as graves turbulências que cercaram a instalação do
novo governo. Mas esta é uma razão, por assim dizer, contingente para postular
a pertinência da coalizão, para além de práticas míopes de neutralização e
cooptação. O motivo principal está em outra parte. É preciso reconhecer que há
estrada a percorrer antes que se possa constatar, com serena confiança, o amadurecimento
democrático das forças fundamentais da esquerda brasileira. Como ninguém
ignora, também entre elas costuma brotar, vindo de algum vão obscuro do
passado, o germe do antiliberalismo que hoje assola a experiência democrática
em escala global.
*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores
das obras de Gramsci no Brasil
Um comentário:
O "americanismo" sempre teve americanófilos capachos e dispostos a qualquer coisa por aqui pra defender os "legítimos interesses" dos EUA... Como tanto diziam estes canalhas, o que é bom pros EUA é bom pro Brasil.
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