domingo, 24 de março de 2024

Luiz Sérgio Henriques* - 1964, o passado que não passa

O Estado de S. Paulo

É preciso reconhecer que há estrada a percorrer antes que se possa constatar, com serena confiança, o amadurecimento democrático das forças fundamentais da esquerda brasileira

Há longos 60 anos, a rememoração dos “idos de março” tem atormentado a memória e pesado como capa de chumbo sobre os pósteros e os cada vez mais raros sobreviventes. Culpa irremissível – dirão – da conciliação em torno da anistia ou da obediência aos ditames da abertura tal como formulada por próceres da ditadura. Como se sabe, na sua formulação original, ela deveria ser “lenta, segura e gradual”, numa espécie de retirada ordenada que estrategicamente sempre constitui feito de notável valor para os que estão na defensiva.

O fato é que mesmo quem discorda, no todo ou em parte, desta avaliação negativa do processo de abertura, afirmando ao contrário que foi muito além da intenção daqueles próceres, não consegue por vezes esconder certo desconforto. É como se fatos e personagens de outro tempo se recusassem teimosamente a deixar o terreno da política para passarem à História, âmbito no qual os dramas, sem ser cancelados, admitem tratamento analítico, se não menos apaixonado, pelo menos mais rigoroso. Vigoraria também em nosso contexto a intuição poética de um William Faulkner, pela qual, na verdade, o passado nunca está morto e nem sequer é passado.

Historicamente, 1964 não é propriamente um raio em céu azul. Luiz Werneck Vianna, um dos seus mais destacados intérpretes, entende aquela data – e os 20 anos de autoritarismo que se seguiram – como uma espécie de repetição de 1937. Pela segunda vez numa geração ou pouco mais, com a breve interrupção do regime liberal de 1946, a implantação do capitalismo entre nós requeria os mecanismos coercitivos próprios da “modernização conservadora”. Antigas elites agrárias e modernos capitães de indústria associavam-se para promover o desenvolvimento acelerado das forças produtivas, sob a tutela, em ambos os casos, de um Estado fraco com os fortes e forte com os fracos. E, naturalmente, tal pacto vedava a livre movimentação dos “subalternos” e das suas formas de representação políticas e sindicais.

Neste tipo de análise não há estagnação, mas progresso material, ainda que desequilibrado, e mesmo democratização social, com a redefinição de classes e da própria estrutura produtiva. Com uma diferença, segundo Werneck Vianna. Em 1937, o padrão de dominação era sistêmico, “europeu”. O corporativismo do Estado Novo incorporava os de baixo e assinalava-lhes um lugar no mundo, ainda que controlado. Em 1964, o padrão consistiu numa forma degradada de “americanismo”: importava o crescimento a toque de caixa, e mais nada. A partir daí se seguiriam automaticamente novas formas de sociabilidade e organização política, quando o que se colhia, na verdade, era um fruto podre: uma sociedade civil desorganizada e atravessada por manifestações selvagens de individualismo. (O curto e denso texto do sociólogo está em 1964 – as armas da política e a ilusão armada, organizado por Caetano Araújo, Brasília, Fundação Astrojildo Pereira, 2014.)

Conservadora, mas moderna; nada feudal ou semifeudal, mas plenamente capitalista – eis a sociedade com que afinal se defrontavam as forças oposicionistas, inclusive as de esquerda. Estas últimas se viram diante de duas táticas possíveis na resistência. Se fechassem os olhos para a modernização, repetiriam, elas também, o roteiro anti-imperialista, “nacional-libertador”, da década de 1930. Um anacronismo que levaria à luta armada, a exemplo da rebelião de 1935, com sérias consequências para si mesmas e o País. Se assimilassem a realidade que desabrochava “violentamente”, as esquerdas encetariam o caminho da frente democrática, colocando-se como agentes, entre muitos outros, de reordenamento e reativação de uma sociedade civil progressivamente menos inorgânica, capaz de condicionar em sentido positivo a reconstrução da própria sociedade política.

O passado talvez não passe mesmo, como queria Faulkner e como subscreveria, entre outros saberes, a psicanálise. Podemos reiterar o argumento, desenvolvendo-o de outra maneira. A frente democrática dos anos de chumbo, corporificada em conquistas inestimáveis como a Constituição de 1988, desdobra-se ainda hoje, basicamente, numa aliança estratégica com os liberais e a considerável parte dos conservadores que resiste à maré montante do subversivismo elementar dos radicais de extrema direita.

Já se apontou com razão o peso decisivo deste tipo de aliança no desfecho do processo eleitoral de 2022, bem como o seguro por ele oferecido contra as graves turbulências que cercaram a instalação do novo governo. Mas esta é uma razão, por assim dizer, contingente para postular a pertinência da coalizão, para além de práticas míopes de neutralização e cooptação. O motivo principal está em outra parte. É preciso reconhecer que há estrada a percorrer antes que se possa constatar, com serena confiança, o amadurecimento democrático das forças fundamentais da esquerda brasileira. Como ninguém ignora, também entre elas costuma brotar, vindo de algum vão obscuro do passado, o germe do antiliberalismo que hoje assola a experiência democrática em escala global.

 

*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das obras de Gramsci no Brasil

 

Um comentário:

Daniel disse...

O "americanismo" sempre teve americanófilos capachos e dispostos a qualquer coisa por aqui pra defender os "legítimos interesses" dos EUA... Como tanto diziam estes canalhas, o que é bom pros EUA é bom pro Brasil.