Revista Será?
Luís Vaz de Camões veio da pequena
nobreza – assim se dizia, na época, dos nobres sem casas nem títulos em
Portugal. Desde jovem, passava dias e noites pelas ruas entre pedintes,
arruaceiros, prostitutas, desvalidos. Ou nas tabernas. E escrevendo versos,
quando possível, às vezes em troca de gorjeta. Ou comida.
Era conhecido, pelas incontáveis rixas em que
se metia, como Trinca-Fortes. Em uma delas, na noite da procissão de Corpus-Christi, golpeou
com espada o pescoço de Gonçalo Borges, cárrego (responsável) dos
arreios do rei. Acabou preso no tronco. Libertado por Carta
Régia de Perdão, em 7 de março de 1553, teve que pagar quatro mil
réis para caridade e foi obrigado a ir servir na Índia. Seria mudança
definitiva, em sua vida. Um destino jamais sonhado por seus pais – Simão Vaz de
Camões, capitão de nau; e Ana de Sá, dos Macedo de Santarém, doméstica.
Em torno dele, quase tudo é incerto. Sabe-se, dos serviços que prestou na armada portuguesa, que nasceu em Lisboa – ou Coimbra, ou Santarém, ou Alenquer. Talvez em 1523 ou, mais provavelmente, em 1524 (havendo ainda que sugira começos de 1525). Tendo a lei portuguesa 1540, de 02/02/1924, definido que teria sido em 05.02.1524, agora completando essa data 500 anos. Estudou em Coimbra, entre 1542 e 1545, com o tio dom Bento de Camões, prior do Convento de Santa Cruz. Até que voltou para Lisboa. Mas a carreira das armas, logo percebeu, era mesmo das poucas opções que lhe restavam.
Para cumprir aquela sentença de
perdão embarcou pouco dias depois, em 24 de março, na poderosa armada do
capitão-mor Fernão Álvares Cabral. Para Goa (Índia). Ali, naquele mundo para
ele novo, sofreu todas as agruras. Em expedição a Ceuta, perdeu o olho direito
numa batalha. Em 1558, naufragou na foz do rio Mekong – costa do Sião (hoje,
Tailândia). Salvou-se despido, como todos os demais sobreviventes, tendo em uma
das mãos os primeiros versos de seu Os Lusíadas. Nesse episódio teria
morrido uma chinesa, a quem Camões deu o nome poético de Dinamene, e para
quem depois escreveria uma série de poemas, entre eles o famoso Soneto 48:
Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida, descontente,
Repousa lá no Céu eternamente
E viva eu cá na terra sempre triste.
Se lá no assento etéreo, onde subsiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.
E se vires que pode merecer-te
Alguma cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,
Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.
Foi Provedor dos defuntos nas partes da
China, desempenhando suas funções com não muita lisura, é de justiça
reconhecer. E, vez por outra, frequentaria prisões. Por dívidas. Ou rixas. Como
dizia o próprio Camões, “Erros meus, má fortuna, amor ardente/ Em minha
perdição se conjuraram”. Mas, sobretudo, nunca parou de escrever.
Em 1570, afinal, estava novamente de
volta a Lisboa. Com as carências financeiras de sempre. Segundo se conta,
sobreviveu durante algum tempo graças ao fiel Jau, trazido das Molucas. Esse
escravo esmolava, de noite, pedindo pão para seu mestre. Importante é que Os
Lusíadas avançava. Sob o patrocínio de d. Manuel de Portugal, devotou-se
então à sagração de seu país – naquela que é considerada, consensualmente, a
mais bela epopéia do século XVI.
A edição princeps – assim se diz
das primeiras edições de um livro – foi impressa na tipografia de António
Gonçalves, em Lisboa, no ano de 1572. Com privilégio real de impressão por 10
anos e publicada com um benévolo (e corajoso) parecer censório de frei
Bartolomeu Ferreira, sem data. Terá tido também licença da Mesa Inquisitorial –
que, todavia, não foi impressa. O aparato paratextual é simples, 8.816 versos e
1.102 estrofes divididas em 10 cantos. Utilizando a divisão da divina Comédia,
de Dante – que assim tem, como cantos, seus 100 livros. Há, hoje, cerca de 25
exemplares ainda existentes, em bibliotecas ou nas mãos de colecionadores.
Talvez menos que 10 completos.
Até fins do século XIX, se acreditava ter
havido duas edições princeps. Um mito devido a Manuel Faria e Souza –
que (em 1639), ao comentar Os Lusíadas, confrontou dois volumes daquele
mesmo ano de 1572; e verificou haver, neles, pequenas diferenças. Depois se
comprovando terem sido bem mais que duas. Restando hoje assente que assim
ocorreu pelo desejo de Camões, ou seu editor, em corrigir pequenas incorreções
das impressões anteriores. Dando-se que, em alguns casos, foram sendo
aproveitados conjuntos de páginas já impressas, antes, e não utilizadas.
Fazendo-se, as correções, nas novas páginas impressas. Uma explicação que só se
pode compreender pelos rudimentares sistemas de impressão daquela época.
Apesar de numerosos indicativos dessa edição princeps na
comparação com as demais, e curiosamente, o que a identifica é um pelicano, à
primeira página, com o bico virado para a esquerda do leitor. Além do pelicano,
também um detalhe no terceiro verso da primeira estrofe, que começa por “E
entre”; enquanto, nas versões corrigidas, começa por “Entre”. Essas edições de
1572 tornaram-se conhecidas, por isso, como “Ee” e “E”.
Camões tinha com ele, ao morrer, aquela que
acabou tida como a primeira edição autêntica, deixada ao frei Joseph Índio, que
o acompanhava num hospital de Lisboa. Esse volume é conhecido como Holland
House – por ter estado em casa do general Lord Holland, em Londres, a
partir de 1812 e por mais de cem anos.
Outra edição famosa, em Portugal, é a segunda
? conhecida como dos piscos. Surgida em 1584, dois anos após o fim do
prazo do alvará que protegia a primeira (de 1572). Impressa pela tipografia
Manuel de Lira, em Lisboa, e com licença do mesmo frei Bartolomeu Ferreira –
responsável pela autorização da edição princeps. O nome jocoso dado à
edição vem de uma citação, nos Lusíadas (Canto III, 65), sobre a “piscosa
Cizimbra”. Sezimbra é uma vila portuguesa no distrito de Setúbal. Abundante em
peixes, bom lembrar. Trata-se da primeira edição comentada de Os
Lusíadas. Explicando a citação, o comentador, como referência aos pássaros
que ali se juntam em passagem para a África, provavelmente se
referindo ao Pisco-de-peito-ruivo (Erithacus Rubecula).
Camões segue a trilha de outras epopéias do
passado. Sobretudo a Eneida, de Virgílio; o que se vê até na
comparação dos versos iniciais dos poemas: Canto as armas e o varão, Virgílio;
e As armas e os Barões assinalados, Camões. Também a Ilíada e
a Odisseia, de Homero. Bem como a divina Comédia, de Dante. Além
de numerosas epopéias surgidas em Portugal, no mesmo século XVI de Os
Lusíadas, mas antes dele – como as de André de Resende, Manuel da Costa ou José
de Anchieta; e manuscritos que circularam, antes de 1572, como os de António
Ferreira e Jerónimo Corte-Real.
Nele temos o passado, com a exaltação das
conquistas em que o povo português foi muito além do Mar Tenebroso. O
presente, com o lamento pelo abandono das terras africanas por Portugal – de
Safim a Azanos, de Azila a Alcácer Cequer; sem contar a ameaça turca, conjurada
só na batalha naval de Lepanto, em 7 de outubro de 1571. Mas é sobretudo a
antevisão de um futuro grandioso, na linha da Utopia do Quinto Império.
“Para servir-vos, braço às armas feito;
Para cantar-vos, mente às Musas dada” (Os Lusíadas, Canto X, 155). Pouco
antes, em Desenganos, escreveu “Nascemos para morrer/ Morremos para
ter vida/ Em ti morrendo”. Assim foi. Luís Vaz de Camões morreria em 10 de
junho de 1580, pouco depois do desastre de Alcácer Quibir – em que desapareceu
d. Sebastião, o Desejado, e Portugal passou a ter um rei espanhol.
Foi enterrado na igreja de Santa Ana e seus restos acabaram transferidos, em
1894, ao mosteiro dos Jerônimos, onde repousam num túmulo esculpido em mármore
bem na entrada. Consta que disse, ao morrer, “Ao menos morro com a pátria”.
*Consultor de UNESCO e Banco Mundial Presidente de EBN, CADE e Conselho de Comunicação Social, do Congresso Nacional. Ministro da Justiça. Membro da Comissão Nacional da Verdade. Membro da Academia Pernambucana de Letras. Membro da Academia Brasileira de Letras Membro da Academia Portuguesa de Letras (Academia de Ciências de Lisboa).
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