Folha de S. Paulo
Massa falida e as oligarquias pactuam com uma
forma sociopata de liderança
Na cerimônia do Oscar, o apresentador Jimmy Kimmel rebate uma crítica de Trump: "Já não está na hora de você ir para a cadeia?".
Se avaliada em termos tradicionais, seria resposta moralmente arrasadora a um
ex-presidente americano, novamente candidato, bancando papagaio de pirata
online no evento de teledifusão mundial que é a maior premiação cinematográfica
dos EUA.
Hoje, o cardápio trumpista de política despreza a moral, a vergonha própria e prospera na metabolização da repulsa dos adversários, mais do que na afeição dos adeptos, pois esse é o combustível do seu ódio.
O pragmatismo postula que nossas verdades, ou
pelo menos aquilo em que acreditamos, são hábitos bem-sucedidos de ação. O
senso comum costuma pensar a partir desse princípio, e até mesmo os grandes
explicadores da vida social se inspiram numa tradição intelectual, se não
bem-sucedida, muito debatida. Mas a conduta democrática não decorre de ideias
reguladoras com prescrições normativas como provas de verdade. Decorre, sim, de
formas de vida variadas, nas quais se pode ou não acreditar, a depender do lugar
de fala.
São elas que, em sua novidade, apontam para
uma lógica de vida diferente da velha política, insuficiente frente à complexidade
sócio-histórica, assim como ao afloramento no plano social dos aspectos
sensíveis das ações humanas. A dignidade do agir público e a compreensão do que
é politicamente humano têm sido avaliadas pela linguagem do compromisso com as
classes desfavorecidas. Isso é inerente à tradição de pensamento progressista
que subsiste em círculos intelectuais, mas estaria desaparecendo até mesmo do
senso comum liberal.
Por um lado, os militantes neoliberais e a
mídia sempre trabalharam para desqualificar movimentos populares de ampla
abrangência social. Por outro, a nova realidade é terreno pantanoso onde
chafurda a ultradireita, sem se sustentar na história (daí, o abismo
da sociopatia), mas agarrando-se aos próprios cabelos num movimento insensato,
sem anseio de emancipação humana.
Hungria, Rússia, Estados Unidos, Coreia do
Norte, Argentina, Venezuela, Nicarágua, Portugal, lista ainda incipiente, são
lugares mais visíveis da crise dos sistemas de poder e das mudanças associadas
à falência da sociedade política tradicional. Em cada um deles a massa falida e
as oligarquias pactuam com uma forma sociopata de liderança.
Natural o destaque
de Trump, por se localizar no centro do Império o seu pântano particular.
Ali fica claro que moralidade não é mais nenhum motor político e que a
racionalidade do avanço tecnológico pode ser parceira do irracionalismo cívico.
Mas a pergunta de Kimmel ao histrião, válida para outros, mostra que algum bom
senso continua vivo.
*Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”
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