O Globo,23/03/2024
Numa democracia saudável é importante que
exista espaço para a direita e para a esquerda, para convergências, para
divergências
O triunfo do Chega nas recentes eleições em
Portugal não foi uma surpresa. Porém, doeu a muitos como se fosse. A ideia
romântica de que Portugal estaria, de alguma forma mágica, protegido do avanço
da ultradireita, caiu por terra com escândalo e fragor.
Como em tantos outros países, incluindo o Brasil, a ascensão da ultradireita prejudicou em primeiro lugar os movimentos conservadores tradicionais. Antes de Donald Trump ser um nome conhecido no mundo, havia em Portugal uma direita urbana e civilizada, com personalidades amáveis e de grande cultura, respeitadas por toda a gente, como Diogo Freitas do Amaral, Francisco Lucas Pires ou Adriano Moreira.
A meia centena de deputados do Chega que
agora acede ao belo edifício do Parlamento português, no tradicional bairro de
São Bento, não tem proximidade alguma, nem ideológica, nem sociológica, nem
civilizacional, com aquelas personalidades. São uma coleção disparatada de
oportunistas, charlatães, desordeiros, e pequenos delinquentes, com poucos
princípios e escassa cultura política (estou sendo generoso). Não chegam ao
Parlamento com o objetivo de propor soluções. O seu único propósito, porque só
isso sabem fazer, é tumultuar. Enfim, são agentes da desordem.
O fortalecimento global da ultradireita é, em
larga medida, responsabilidade da esquerda. Enquanto a direita perdia a
civilidade, a esquerda perdia os sonhos. Pior: perdia a capacidade de sonhar,
dividindo-se em lutas tribais e debatendo aos gritos o sexo dos anjos. Ao mesmo
tempo, os problemas do planeta agigantavam-se, com o aquecimento global
aprofundando as desigualdades entre os países do norte e do sul, e as novas
tecnologias sofisticando velhas mentiras.
Numa democracia saudável é importante que
exista espaço para a direita e para a esquerda, para convergências, para
divergências e até, diante da singularidade e magnitude de alguns dos problemas
que enfrentamos hoje, para ideias e movimentos inteiramente originais. Agentes
da desordem, porém, não servem à democracia. São uma doença dos sistemas
democráticos e precisam ser identificados e tratados como tal.
Estas forças da desordem constituem, além de
tudo o resto, paradoxos deprimentes. O Chega, por exemplo, pretende fechar a
porta aos emigrantes. Entre os seus novos deputados, contudo, destaca-se um
brasileiro, e um ex-imigrante português. O brasileiro, que é negro, produziu há
poucos dias um bizarro discurso, defendendo uma Europa só para os brancos, e
uma África só para os negros. O colega, tentando ultrapassá-lo em ingenuidade,
confessou que durante muito tempo foi imigrante ilegal num outro país europeu.
Para travar esta onda seria necessário que os
democratas, de esquerda e de direita, se juntassem na defesa da democracia. O
novo primeiro-ministro português, o social-democrata Luís Montenegro, afirmou
durante toda a campanha eleitoral não estar disponível para alianças com o
Chega. A esquerda deveria apoiá-lo, incentivá-lo, acarinhá-lo, ao invés de
esperar que Montenegro venha a ser defenestrado através de um golpe palaciano
no seio do seu próprio partido, ou que o governo tropece e caia, de pura fraqueza,
ao virar da esquina. Infelizmente, o mais certo é que caia. Então, as forças da
desordem voltarão a ganhar.
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