domingo, 24 de março de 2024

Míriam Leitão - Cid, os golpes e o governo Lula

O Globo

O governo precisa administrar bem o país, e não ficar olhando ponteiro de pesquisa, e assim marcar diferença com o mandato que usou a máquina apenas para preparar um golpe

Quando o tenente-coronel Mauro Cid chegou para depor na sexta-feira, às 13 horas, diante do juiz auxiliar de Alexandre de Moraes, a Polícia Federal já havia representado contra ele junto ao próprio STF. E o país estava dividido novamente, agora sobre se os áudios postados pela revista “Veja” desmoralizavam ou não a delação. O diretor-geral da Polícia Federal, Andrei Passos Rodrigues, me disse, na sexta de manhã, que a PF viu com gravidade “o que as falas acusam”. Contou que havia representado ao STF para que se esclareça “já que fomos levianamente acusados”. E completou: “Ninguém acusará a PF e o STF dessa forma e ficará incólume.” De tarde, Cid terminou o depoimento preso e com o celular apreendido. O que tudo isso informa sobre a situação política atual?

Ao contrário do que comemoraram as redes bolsonaristas, isso não alivia a situação do ex-presidente e do seu entorno. Cid disse nos áudios que a “Veja” divulgou que a “narrativa” estava pronta, insinuando que ele estava sendo empurrado apenas para confirmar a versão já montada pela PF e levantou dúvidas sobre o ministro Alexandre de Moraes. No depoimento negou o que havia dito e garantiu que colaborou espontaneamente.

Nada disso tira a força do que está sendo provado em todas as investigações que recaem sobre o antigo ajudante de ordens do ex-presidente. A colaboração premiada é um caminho para a prova. Não é a prova em si. Mas existem indícios fortes que corroboram tudo o que já se sabe que ele teria dito. Sobre as vacinas, há provas de adulteração de um site público para emitir documento fraudulento. Sobre o inquérito das joias, há provas materiais. Sobre o terceiro processo, o da tentativa do golpe de Estado, há farta documentação. É um péssimo momento para Bolsonaro e seus companheiros do projeto autoritário. Coincidentemente tudo isso vem a público no período em que se lembra o início do mais doloroso momento da política nacional no século passado, a ditadura militar deflagrada pelo golpe de 31 de março, que completa 60 anos no domingo que vem.

Essa era a hora de o governo Lula trabalhar para marcar a diferença entre uma administração que usou a máquina e mobilizou ministros por um projeto autoritário, tentando reviver esse passado odioso, e um governo que faz o retorno à normalidade democrática e administrativa. Há muitos avanços na atual gestão do país, mas muitas derrapagens também.

A reunião ministerial para discutir o desempenho do governo nas pesquisas de opinião deveria estar focada nos esforços para melhorar o governo em si e evitar tantas declarações improvisadas e polêmicas do presidente. O governo Lula tem o que mostrar, e ficar olhando os ponteiros das pesquisas não ajuda muito. Na própria sexta-feira, os ministérios da Fazenda e do Planejamento divulgavam dados bons no relatório de despesas e receitas, confirmando o projeto de buscar o déficit público mais baixo possível.

Quem foi eleito tem o ônus de dar as respostas para as crises, superar as dificuldades do país e entregar projetos. A atual administração precisa ter em mente que lhe cabe governar bem. Até porque os seus mais radicais adversários, o ex-presidente e os seus auxiliares militares diretos, estão atravessando uma zona de turbulência criada por eles mesmos e que só tende a piorar. A prisão espera vários deles.

É um equívoco a ideia de que os áudios conseguidos pela revista “Veja” poderiam ajudar os investigados da intentona golpista, porque supostamente confirmariam que Cid está sendo coagido a dizer o que disse na delação. Primeiro, ainda não se sabe oficialmente o teor da delação. Segundo, o que cerca hoje Bolsonaro, general Heleno, general Braga Netto, general Paulo Sérgio Nogueira, entre outros menos estrelados, é o conjunto probatório que já se acumulou. Entre provas e indícios estão, por exemplo, as minutas de golpe, o vídeo da reunião de 5 de julho de 2022, em que o general Heleno propõe virar a mesa antes das eleições, os diálogos capturados que revelam Braga Netto instigando um ataque virtual aos comandantes do Exército e da Aeronáutica por eles não terem aderido ao golpe. Além dos depoimentos dos próprios ex-comandantes.

Mesmo que Lula tenha tomado a estranha, e inútil, decisão de suspender qualquer ato sobre 31 de março — como se fosse possível apagar a História — os rastros dos golpistas de hoje lembram o tempo todo que o país ainda não resolveu aquele passado.

 

Um comentário: