Eu & Fim de Semana | Valor Econômico
A multidão cansada começava a subir a avenida Rebouças, em São Paulo, em direção à avenida Paulista para uma manifestação pela moradia. Na frente e atrás do cortejo, agrupamentos da Polícia Militar abriam e fechavam o caminho, dirigindo o trânsito e protegendo os manifestantes. A multidão caminhava há horas. Vinha dos municípios das zonas sul e oeste da região metropolitana. Uma mulher grávida, resoluta, ia bem adiante da maioria. Velhos, moços, mulheres e homens, alguns muito gordos, outros muito magros, caminhavam firmes.
Espalhados pelo meio, pequenos e improvisados comerciantes ganhavam o pão nosso de cada dia. Em carrinhos de mão, transportavam os equipamentos de seus negócios. Apostaram na sede e na fome dos caminhantes. Apostaram, também, no espírito de festa e de celebração próprio dos ajuntamentos coletivos. Algo no estilo da festa do forno comunitário, da Idade Média.
Um carregava grande caixa de isopor com gelo e latas de cerveja. Outro carregava uma caixa com dois garrafões de vinho e os copos de plástico para servir a bebida. Outro fazia o mesmo, mas os garrafões eram de cachaça. O mais original empurrava um carrinho de supermercado sobre o qual adaptara uma churrasqueira, em cujo braseiro estavam bem distribuídos os espetos de carne. Ao lado, uma travessa de farinha de mandioca. Aqui e ali parava para atender a um ou outro manifestante e vender o seu churrasco.
Conhecemos pouco esse capitalismo residual e intersticial, o capitalismo moral dos pobres, carregado de características do pequeno capitalismo comercial de tempos pré-modernos. Aqui e alhures, não poucas vezes esse capitalismo caseiro e persistente respondeu por soluções provisoriamente salvadoras para as vítimas do capitalismo de manual e de grande teoria em suas crises desastrosas, como a de agora. A escala é infinitamente menor, mas assegura renda e emprego de sobrevivência.
A teoria dos grandes diz como ganhar mais, mas não ensina como ganhar decentemente nem ensina a salvar a economia do desastre que decorre do mais sem consciência crítica e regulações preventivas. Bom empresário não é necessariamente quem com pouco ganha muito, mas quem ganha compreendendo criticamente o ganhar e a função social do capital, o capital que cria lucros, mas que cria emprego e salário também.
Nesse sentido, vale a pena lembrar a constatação sociológica de Karl Marx de que o capitalista é um funcionário do capital. Quando o capital envereda pelo caminho de reduzir o trabalho a custo zero, deve saber que está matando a base social de sua reprodução econômica.
Trabalho zero significa, tendencialmente, mercado zero. Produção sem mercado significa que o próprio capitalista terá que comer o macarrão que produz, mas também as porcas, os parafusos, o tecido, os pneus, as panelas vazias. Esse é o lado indigesto do capitalismo desprovido de consciência social e de técnicas sociais de sobrevivência.
Nasci e cresci no subúrbio industrial de São Paulo, no meio de grandes fábricas, de fábricas médias e de pequenas fábricas clandestinas. O imediato pós-guerra era o tempo do pleno emprego, do grande e profícuo surto de industrialização que o país já viveu. Aos 11 anos de idade, eu já estava empregado numa fabriqueta de fundo de quintal, que tinha dois proletários: a mulher do patrão e eu. O patrão era um operário qualificado de grande indústria. Ele mesmo inventara e construíra três ou quatro máquinas para desmontar latas vazias de óleo de cozinha recolhidas no lixo pelos catadores de ferro-velho. Desmontadas, limpas, removida a pintura das marcas industriais com ácido, tornavam-se matéria prima de guarnições de vassouras de piaçaba.
Conheci muitas dessas fábricas dos mais diferentes produtos. Aos 14 anos, a quatro quarteirões dali, eu já trabalhava na fábrica de um dos maiores e mais criativos industriais brasileiros, a Cerâmica São Caetano, de Roberto Cochrane Simonsen. Engenheiro formado pela Escola Politécnica de São Paulo, era também ele um empreendedor criativo. Sua biografia contraria tudo que os teóricos da industrialização já disseram para explicar por que um país periférico, mergulhado na economia colonial de exportação de café, se tornara em poucas décadas um país industrial.
Também historiador e teórico da economia, sua história contraria as teses de Celso Furtado, que era apenas economista. A fábrica de Simonsen tinha embutida uma fábrica acessória de bens de capital. Ele fazia suas próprias máquinas. O saber ministrado pela Escola Politécnica criou uma geração de empreendedores. A criatividade para improvisar e suprir com o que se tinha o que não se podia conseguir fora do país inventara a industrialização brasileira.
*José de Souza Martins é sociólogo, membro da Academia Paulista de Letras e autor de A Sociologia como Aventura (Contexto), dentre outros.
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