Isto
implica, quem sabe, a parar de pensar que sua posição política corresponda à
própria democracia
Joe
Biden fez um apelo interessante em seu discurso
de vitória. Pediu que as pessoas parassem de demonizar e tratar os
adversários como inimigos. Linhas à frente, disse que havia vencido para
“restaurar a decência e defender a democracia”.
Observe-se
como mesmo um político moderado e boa gente como Biden tropeça. Se um lado
“organiza as forças da decência” e expressa, ele mesmo, os valores da
democracia, o que sobra exatamente para o outro lado?
Acho
que foi apenas uma escorregada de Joe Biden. Sua
história o credencia para ajudar a “curar a América” do diálogo de
surdos em que se transformou a política americana. Vamos finalmente testar a
tese de que basta que o exemplo venha de cima e tudo se ajeita.
Não
acho que as coisas sejam tão simples. O processo de polarização nas democracias
é mais profundo do que costumamos reconhecer. O discurso radicalizado de quem
está no poder ou de quem faz oposição é antes consequência do que causa desse
processo.
Apenas
um exemplo. O Pew Research Center mostrou que 74% dos eleitores de Biden acham
que é “muito mais difícil ser um negro do que um branco neste país”. Entre os
eleitores de Trump, apenas 9% concordam com isso.
Estamos
tratando de temas que vão muito além dos limites convencionais do debate
político. Não apenas a distância entre as visões de mundo duplicou, desde os
anos 1990, como se ampliou o arco dos temas sobre o qual se diverge, em um
quadro em que tudo ganhou dramaticidade.
Há
muitas razões que explicam isso. Piketty vem observando, com base em boa
pesquisa acadêmica, como os setores à esquerda do espectro político refletem
cada vez mais a mentalidade de elites metropolitanas e bem educadas, e à
direita o interiorano, menos culto e tradicional. A clivagem entre
“globalistas” (alta educação, alta renda) vs. “nativistas” (baixa educação,
baixa renda).
Em
grandes linhas, foi o que se viu na eleição americana. É apenas um indicador.
As razões do crescimento da polarização política dizem respeito a uma mudança
de eixo do debate público em boa medida determinada pelo impacto da revolução
tecnológica sobre a democracia.
Ocorre
que o ingresso massivo e direto dos indivíduos na cena pública mudou a pauta do
debate político. Temas de identidade passaram a definir muito da pauta política
e, na direção contrária, a defesa da tradição. Questões por definição menos
abertas à argumentação e à geração de consensos relativamente aos temas
tradicionais da politica institucional.
Pode-se
discutir com alguma frieza e eventualmente chegar a um acordo sobre déficit
orçamentário ou política previdenciária, mas não há chance quando a pauta gira
em torno de convicções mais profundas envolvendo religião, raça, gênero, o
começo da vida ou papel da família.
Além
da incomunicabilidade, são temas próprios à atitude típica do ativista digital:
a sinalização de virtude, para si, e a regulação da vida e da linguagem, para
os outros. Atitude que só gera conformidade fácil, na própria tribo, e raiva,
na do vizinho.
John
Stuart Mill deu pistas sobre isso, século e meio atrás, em seu livro sobre a
sujeição das mulheres. Ele dizia que uma opinião fortemente enraizada nos
sentimentos “fica ainda mais sólida quando enfrenta uma massa de argumentos
contra ela”. A lógica do diálogo, central na democracia, é estranha e pouco
efetiva diante da barreira cultural.
Talvez
é disso que Biden esteja tratando quando fala em “abaixar a temperatura” da
politica americana. Quem sabe voltar aos termos das eleições de 2008. À época,
tanto Obama quanto McCain deixaram claro que não havia questão de “decência” ou
de amor ao país entre eles, mas apenas de visões sobre a política.
Vai
aí o desafio. Desdemonizar a política significa aceitar seus limites. Aceitar
que a falibilidade, a ideia de que em uma democracia ninguém tem monopólio da
virtude e da verdade. Na prática, parar de imaginar que a sua posição
casualmente corresponda ela mesma à própria democracia.
Um
pouco de humildade. Sou meio cético, mas acho que Biden pode, de fato, dar uma
grande contribuição aí.
* Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.
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