A
mais óbvia: há que construir uma ampla coalizão e tirar votos do campo
adversário
O
título deste artigo deve ser lido com um pé atrás. As características do
sistema partidário e do processo eleitoral são muito diferentes nos dois
países. Ainda assim, a vitória de Joe Biden sobre Donald Trump deixa lições
úteis para as forças de oposição ao governo Bolsonaro.
A
mais óbvia delas é a necessidade de construir uma ampla coalizão e subtrair
votos do campo adversário. Quando o país está praticamente dividido em duas
metades iguais, não basta contar com todos os votos do seu próprio campo
político para assegurar a maioria eleitoral. Nos Estados Unidos, a questão se
colocou de imediato e influenciou as próprias primárias do Partido Democrata.
Aqui, imagina-se que esse seja um problema para o segundo turno. Trata-se de um
engano. Em sociedades destrutiva e perigosamente polarizadas, é preciso
construir uma alternativa já para o primeiro turno.
Como a chapa Joe Biden-Kamala Harris conseguiu obter apoio maciço de sua base política e, ao mesmo tempo, captar votos de quem havia votado em Trump quatro anos atrás? A escolha dos personagens importa. A soma das características políticas e pessoais dos candidatos democratas explica em boa medida o sucesso da campanha do partido para a Casa Branca: ele, um político capaz de ser aceito, mesmo sem entusiasmo, por um amplo contingente de eleitores; ela, uma mulher negra que, sem puxar a chapa muito para a esquerda, acrescentou à dupla a marca identitária valorizada pelos eleitores mais jovens e “progressistas”. E mais: ele, um homem crivado pela tragédia, pai amoroso, querido pela mulher, pelos amigos e mesmo por muitos adversários, por sua simpatia natural; ela, uma filha de imigrantes que se integrou ao establishment por trabalho e mérito, ex-procuradora geral da Califórnia, “liberal” nos costumes, porém “firme” em matéria de lei e ordem.
Mas
na política, como nas artes cênicas, não basta escolher os personagens, é
preciso criar o enredo. Ou melhor, é necessário que atores e narrativa sejam
congruentes entre si e adequados ao momento. A campanha democrata produziu uma
mensagem feliz para definir o que estava em jogo: a battle for the soul of
America (uma batalha pela alma dos Estados Unidos). Feliz porque permitiu
uma conexão emotiva dos eleitores com a campanha e estabeleceu o terreno onde o
Partido Democrata pretendia jogar o jogo: o campo dos valores e do caráter. A
ressonância religiosa do slogan é evidente. Bela sacada num país,
como o nosso, em que o sentimento religioso é estendido e profundo.
Ao
contrário dos republicanos, os democratas não mobilizaram a religiosidade para
demonizar o adversário, mas sim para convocar “our better angels” (os nossos
anjos bons, em tradução livre) a enfrentar os desafios do país. Não foi uma
campanha, como a de Trump em 2016, para insuflar a raiva e o ressentimento, e
sim para assoprar a chama do “melhor lado de todos os americanos e americanas”.
Foi uma campanha contra Trump, mas não contra os seus eleitores, referidos
sempre como “fellow americans” (compatriotas), e não como “a basket of
deplorables” (um monte de gente deplorável, como disse Hilary Clinton em 2016).
A
batalha pela alma dos Estados Unidos pôs na linha de frente alguns poucos
valores básicos – decência, civilidade, solidariedade, etc. – e os traduziu em
termos concretos nas propostas de fortalecimento da proteção social (saúde, em
particular), transição para uma economia de baixo carbono (com geração de renda
e empregos) e luta contra o racismo estrutural (apresentada como uma luta pela
igualdade). Dessa maneira projetou uma visão contrastante com a de Trump sobre
o que são e o que podem ser os Estados Unidos, capaz de ser compreendida e
reproduzida pelo eleitor comum.
Cada
país é um país, cada eleição é uma eleição. Faltam dois anos para a próxima
eleição presidencial no Brasil. É muito ou pouco tempo? Depende para quê. Para
escolher os personagens é muito, mas para criar o enredo está mais do que na
hora de começar. Num país com vários e pouco estruturados partidos, onde o
personalismo impera, a escolha dos personagens consome tempo e energia
excessiva em prejuízo do que deveria ser o essencial, principalmente a esta
altura: com base em que valores, em torno de que propostas e por meio de que
mensagem política é possível formar uma aliança de forças suficientemente ampla
e consistente para derrotar Bolsonaro e o bolsonarismo e governar o País a
partir do próximo mandato presidencial?
Para
ajudar na resposta recorro à sabedoria alheia. Perguntado num jantar com
“representantes da sociedade civil”, cada qual com sua bandeira, sobre como
deveria ser o programa de uma “frente progressista” em 2022, um governador de
Estado, relativamente jovem, mas macaco velho na política, respondeu: deve ser
mínimo, conter apenas o essencial e falar aos corações e mentes do brasileiro
comum, homens e mulheres, pretos e não pretos, cristãos e não cristãos, homo e
heterossexuais, na condição de cidadãos brasileiros.
*Diretor-Geral da Fundação FHC, é membro do Gacint-USP
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