Refletir
sobre as notícias do jornal é uma tarefa que interessa a todos que refletem
sobre a política. A conjuntura com seus vários fenômenos, diversos atores e
suas interações múltiplas, seus resultados ora surpreendentes ora esperados
exigem do espectador um instrumental que lhe permita separar o passageiro do
permanente; que lhe forneça meios que direcione o olhar para as ações que vão
influenciar o curso dos acontecimentos daquelas que são apenas uma nuvem
passageira, a qual por vezes anuncia uma chuva que não virá. Numa passagem
das Lembranças de 1848, Alexis de Tocqueville reflete sobre as jornadas
daquele ano, vividas no parlamento e nas ruas, nos quais discursos se
multiplicavam, mas que não conseguiam captar o sentido dos fenômenos, cansado
de tanto debates inúteis, ele apela ao “futuro, juiz esclarecido e íntegro, mas
que infelizmente chega tarde demais.”. A partir dessa frase seria injusto
considerar que Tocqueville não considerasse importante refletir sobre a
conjuntura imediata. Acredito que ele desejasse apontar para a dificuldade de
considerar as forças de longa duração e as ações humanas. Essas emprestam aos
acontecimentos uma carga de acaso, pois representam o imprevisto; a escolha
dentre várias alternativas e que gera desdobramentos que transbordam o que
deveria ter ficado retido. Essa interação, entre a ação e as forças de longa
duração, é de difícil apreensão. E, talvez, seja essa a principal tarefa que um
observador da política tem diante de si.
Em
texto publicado nesse blog (6/04/2020), Bernardo Ricupero chamava atenção que o
governo Bolsonaro havia acabado[2].
Naquele momento tal diagnóstico era correto; entretanto, hoje verifica-se que a
conjuntura se modificou. As ações posteriores emprestaram um sentido novo, as
nuvens da paisagem se transformaram e com ela torna-se necessário um novo
diagnóstico. O governo recomeçou e, contudo, não sabemos como ele irá acabar.
O governo acabou, disse um haitiano para Bolsonaro na porta do Alvorada. E, de fato, o governo parecia, se não acabado, pelo menos emparedado. Sucessivas derrotas no Legislativo, ausência de coordenação política, conflitos internos, uma política econômica ultra liberal que não encontrava respaldo na realidade, projetos de reformas paralisados, – ou sequer iniciados no Legislativos – um governo sem políticas sociais, um presidente em confronto aberto com o STF; tudo era sinal de um governo cujo projeto fora construído no plano da utopia, sem contato com o país real. Jamais saberemos se a possibilidade de impeachment era real ou foi só uma justificativa oferecida pelo presidente para seus sicários acalmarem sua ânsia de conflitos. Aquele governo acabou, ou pelo menos, teve ímpeto freado, forçando uma mudança.
A
entrada do centrão no governo e o apaziguamento do conflito com o STF
sinalizaram que duas forças que emergiram após a Constituição de 1988, o
Legislativo e o Judiciário, impuseram sua força a um governo que teimava em
negar a primazia dos fatos. As instituições que emergiram após 88 derrotaram o
governo. Não apenas essas, mas também hábitos muito arraigados na sociedade
brasileira abafaram a utopia bolsonarista. Antes de tudo é mister lembrar que a
ilusão difundida nas hostes bolsonaristas de que as eleições não têm apelo na
sociedade brasileira. Seria útil assinalar para esses utópicos que eleições
para os níveis municipais remontam a 1827 e somente foram interrompidas entre
37 e 46. A meta de governar sem atentar para a realidade eleitoral, apenas com
base no contato entre o líder e a nação das redes sociais, foi abalada nas
eleições municipais de 2020. E segue sendo contrariada pelos fatos a ideia de
um Legislativo dócil, domesticado por um presidente que fala do alto de milhões
de votos para um parlamento particularista, foi barrada pela Câmara Federal e
pelo Senado, que desde 88 acumulam poderes de agenda e de veto.
A
representação não é apenas uma folha em branco cujo conteúdo é escrito pelos
representados, nem um desenho livre de um pintor sobre a tela. Tampouco,
representação não se esgota na eleição, mas é um antes, um processo que envolve
representante e representados numa relação complexa, na qual o papel de agente
nem sempre cabe ao mesmo ator. Se em 2018 as eleições foram dominadas pela
ideia de um demiurgo externo ao sistema político, hoje a conjuntura insiste em
impor as forças políticas que forjaram esse mesmo sistema. E ao que tudo indica
a coalizão presidencial reconheceu tal mudança. Percebeu que um dos temas de
2018 não tem a mesma força.
Ao
longo do tempo, a sociedade brasileira foi tomada por uma paixão. O que era
antigamente chamado de moralismo udenista se espalhou, com uma força
irreversível, por toda a sociedade. Talvez em todos os momentos não seja a
paixão predominante, mas quando não é contrabalançada por outra força, ela
mobiliza todas as classes sociais. Eventualmente, políticas sociais são bem
sucedidas. Mas, quando essas não têm o impacto almejado, surge o diagnóstico
inquebrantável: os problemas residem na corrupção; resolva-se esse mal e o país
irá prosperar. Imaginam, os brasileiros e as brasileiras, que, consolidando-se
a moralidade, os dilemas econômicos, sociais e políticos estarão solucionados.
Nessa visão, a questão não é mais ou menos impostos, o problema não está nas
tímidas políticas sociais distributivas, nem na falta de política industrial; o
problema é moral. Instalando-se a moralidade suprimem-se os dilemas políticos e
o país irá prosperar. Essa busca pela moralidade é, também, a fuga da política.
A política como uma esfera na qual são feitas escolhas entre alternativas
distintas e na qual emergem várias visões de bem comum. Como resultado dessa
paixão pelo moralismo e do entendimento do seu papel, a sociedade brasileira se
retraiu da esfera da política. Sobre esse contexto surgiu o partido da justiça,
o aparato Judiciário como a espada que iria recair sobre os corruptos, doa a
quem doer. E após o sangue jorrar e o saciamento da sede de vingança, o país
iria desabrochar socialmente justo e economicamente desenvolvido. Os fatos
recentes, o afastamento do lavajatismo do governo, o resultado das eleições
municipais, a paralisia do projeto econômico do ministro Paulo Guedes e o
enfrentamento do Coronavírus trouxeram a política para o centro do debate.
Hoje,
a eleição da Câmara recebeu uma luz que não possuía nos pleitos passados. Essa
luz foi tornada visível ao final do discurso do atual presidente, Rodrigo Maia,
quando invocou a frase de Ulysses Guimarães: ‘Temos nojo e ódio da
ditadura.” Os ventos empurraram atores, que antes estavam acostumados a
cuidar da faina legislativa habitual, para um papel mais elevado: o de defender
o Legislativo construído a partir de 1988. Mais uma vez, a coalização
bolsonarista, movida pelo desejo de varrer a constituição de 1988 e suas
instituições, empurrou os atores numa direção, da qual eles não recuaram.
Defender o espaço de poder Legislativo. Um espaço que a própria sociedade
aprendeu a ocupar, como mostram as Leis de Iniciativa Popular, com a Lei Ficha
Limpa e outras iniciativas. Nesse momento, o resultado da eleição da Câmara não
está claro, mas foi dado um passo importante. Montar uma coalizão legislativa
de defesa e afirmação dessa casa e das instituições democráticas.
Mesmo
que o candidato do governo vença a eleição, a agenda da Câmara não será o palco
para um passeio governista. Tudo indica que a agenda do Legislativo saiu do
controle do Executivo, mesmo que na pasta da articulação política saia um
general e entre um senador. Uma vitória do candidato da autonomia do Legislativo
sinaliza para um freio às iniciativas mais radicais do governo. Porém não
apenas isso, mas um esvaziamento da própria coalizão do governo. A ampla
aliança feita em torno de Baleia Rossi pode vir a sinalizar uma alternativa
frente à coalização do governo.
Essa
alternativa não seria um impeachment, para o qual não faltam elementos
jurídicos e políticos. Entretanto, falta um elemento central para tal que o
processo ganhe força: o vice. Nos dois processos anteriores, a movimentação
somente ganhou forma no Legislativo e na sociedade na medida em que havia um
vice que sinalizou uma inflexão na condução do problema que impulsionava o
processo. Hoje, fica claro que parte da crise nasce da incompatibilidade entre
o presidente e a constituição de 88. Ocorre que, ao que tudo indica, o vice é
da mesma cepa do chefe. Como se diz no jargão popular, seria trocar seis por
meia dúzia (a menos, é claro, que o vice sofresse alguma doença e a linha
sucessória passasse para o presidente da Câmara).
A
vitória do candidato do Legislativo seria a vitória de uma possível aliança em
um segundo turno da eleição presidencial. Aliança que faltou em 1989 e 2018. O
exemplo de 1989 deveria ter revelado que essa costura que não é feita em quinze
dias. Como em 1984, não bastou acenar com a foto de Maluf para que a Aliança
Democrática fosse feita; hoje também não basta acenar com alguma foto grotesca
do presidente para que todos pulem no mesmo barco e realizem a travessia da
tempestade que vivemos hoje.
Quem
irá conduzir o barco que fará a travessia? Ciro/ DEM, Lula/PcdoB, Dória/MDB,
Luciano Huck vários são os candidatos. A hora é de marcar pontos mínimos que
afastem o retrocesso e indiquem um campo de luta. Espaço que a atual coalização
governista quer varrer da história. Quem sabe não é a hora dos nomes surgidos a
partir de 88 se tornarem grandes eleitores? Um movimento que Cristina Kirchner
e Evo Morales fizeram recentemente. Nesse processo de reconfiguração da
condução da travessia, é importante compreender que a coalização governista não
foi o resultado de um amálgama natural, resultado inexorável de um processo
histórico.
A
eleição para um cargo do Executivo reúne em torno de si diversos feixes.
Convergem para esse posto diversas demandas, oriundas de grupos distintos. Numa
democracia de massas, a eleição de um representante é, via de regra, a
conjunção de vários vetores, cuja articulação é uma tarefa de virtude política
do representante. Para pensar sobre essa relação é importante ponderar
que diversos vetores estão presentes num contexto sem que haja entre eles
vínculos, ou que sua articulação esteja completa. A ideia de cristalização de
Hannah Arendt nos ajuda a pensar a reunião de forças políticas agregadas em
torno da coalização bolsonarista. Essa reunião não estava inscrita na criação
dessas forças, nem tampouco na história recente do Brasil; mas elas se reuniram
em torno do presidente, que correu em sua direção com a sede dos que têm pouco
em suas mãos. O que a leitura da radiografia da eleição de 2018 permite
concluir é que os setores sociais importantes migraram para a candidatura
Bolsonaro, ou, em outras palavras, o que decidiu a eleição não foram os
eleitores que se dizem de direita ou que sempre votaram no anti-PT.
Não
apenas o enfrentamento com o Legislativo revelou o campo de luta das forças
democráticas, mas a própria inépcia econômica do governo veio à tona com a
crise. Difunde-se entre os atores econômicos a percepção que não existe o menor
consenso no governo sobre como enfrentá-la. A inépcia na saúde pública atinge
diretamente qualquer alternativa econômica. A falta de coordenação econômica e
a inexistência de um horizonte para a vacinação colocam a economia em uma
situação de paralisia semelhante àquela vivida pelo governo Dilma. A possível
recuperação que venha a ocorrer não será suficiente para, sequer, retomar os
níveis sociais e econômicos de 2019.
Porém,
os dados sociais e econômicos requerem atores políticos portadores de valores
capazes emprestar sentido a esses no campo da luta política. Não temos pistas
claras de como esse governo vai acabar o ano de 2021, pois o agravamento da
crise econômica e social pode conduzi-lo a retomar seu projeto de confronto com
as instituições democráticas. O comportamento das forças democráticas ganha
relevo nesse cenário. É preciso estabelecer uma agenda que sinalize uma defesa
destas instituições e uma saída eleitoral para 2022; mesmo que essa não apareça
no primeiro turno da eleição presidencial.
Nós,
iberos e ibero-americanos, sonhamos que é possível lançar um olhar para dentro
do nosso corpo e capturar nossa alma; e imaginamos que exista uma alma, uma
única alma. Uma mirada precisa e iremos agarrar a flor e seu perfume.
Ergueremos a mão de posse da preciosa flor e a exibiremos a todos, nativos e
estrangeiros, com orgulho: eis o que somos e o que seremos. Ilusão, quimera
nunca atingida, nem pelos mais eruditos e nem pelos mais concisos. Não temos
alma. Nem nós, nem os gauleses, nem os britânicos, nem os nigerianos, mesmo os
chineses, uma das nações mais antigas a possuem. É uma ilusão, nossa alma é
como a cor do mar, se transforma. A nossa e a de todas as sociedades. Essa
crise talvez tenha nos servido para mostrar que temos instituições e costumes
democráticos. Até quando irão durar, não sabemos, mas sabemos que os atores que
os sustentam não estão interessados em entregar o jogo sem entrar em campo. O
que já é alguma coisa.
*Professor de Ciência Política, UFRJ.
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