terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Eliane Cantanhêde - Depois da festa, a ressaca

- O Estado de S. Paulo

Mais uma que Jair Bolsonaro perde e ele some, cala e usa o general de escudo

Passada a festa histórica da primeira vacinação em São Paulo, vem a ressaca e, com ela, a realidade de um Brasil onde o presidente da República nega a pandemia e combate a vacina, o ministro da Saúde oscila entre ignorância, prepotência e mentira e, nessas mãos, o futuro da imunização é incerto, não sabido e preocupante.

Goste-se ou não dele, é graças ao governador João Doria que o Brasil pôde começar a vacinar e os Estados estão recebendo avidamente suas primeiras doses. Se dependesse do presidente Jair Bolsonaro e do ministro Eduardo Pazuello, não haveria vacina nenhuma e estaríamos todos chorando as mágoas e os mortos com cloroquina (ou “tratamento precoce”, que a própria Anvisa desautoriza).

Obrigado agora a engolir em seco e requisitar todas as doses de São Paulo, Bolsonaro atacou a Coronavac por meses, depois de desautorizar Pazuello e cancelar a compra de 46 milhões de doses já anunciadas aos governadores: “Vacina chinesa do Doria? Não vou comprar”; “Já mandei cancelar. O presidente sou eu, não abro mão da minha autoridade”. Mais adiante, quando um voluntário se suicidou, o presidente acusou a Coronavac de “morte, invalidez e anomalia” e comemorou: “Mais uma que Jair Bolsonaro ganha”. Danem-se os brasileiros.

No fim, quem ganha? Derrotado e humilhado, o presidente, que mandava o brasileiro reagir à doença “como homem, não como maricas”, escondeu-se mudo no Alvorada, usando Pazuello como seu escudo, assim como Ricardo Salles no Meio Ambiente. Um manda, outros obedecem. Um erra, outros aguentam o tranco. E Pazuello diz que o governo federal pagou toda a pesquisa, importação e produção da Coronavac (??!!), culpa a umidade pelo colapso de Manaus, alega o fuso horário para justificar a falta de vacinas da Índia e jura que nunca indicou cloroquina. Espantoso.

O “dia D” do general para a vacinação foi em março, dezembro de 2020, janeiro, fevereiro, voltou para janeiro e foi ontem graças a Doria e à Anvisa. E a “hora H” da entrega das doses a Estados seria às 9h, ficou para a tarde em alguns e acabou varando a madrugada para outros, com autoridades plantadas em aeroportos. Bem. Se deixou milhões de testes jogados até perderem a validade, se não negociou nem diversificou acordos com laboratórios, se não providenciou nem seringas e agulhas, por que acertaria na distribuição de vacina?

Depois da festa de domingo em São Paulo, mesmo assim, ontem foi dia de vacinação até no Cristo Redentor, no Rio, mas uma pergunta ronda o País: e quando essas doses acabarem? Seis milhões de doses não cobrem nem os profissionais de saúde e não há previsão para atingir uma população-alvo tão gigantesca. Assim como tem de contar com oxigênio da Venezuela, o Brasil não consegue vacinas da Índia nem insumos da... China. Talvez Bolsonaro tenha de ligar para o presidente Xi Jinping, desculpar-se pelos desaforos e pedir socorro.

De um lado, o início da vacinação abriu uma onda de esperança e a sensação de que está tudo resolvido, aglomeração e abraços já! De outro, as doses disponíveis são poucas, a nova cepa do coronavírus é muito mais contagiosa e a falta de planejamento e de responsabilidade do governo federal não garante a continuidade da vacina. Logo, o temor é de que, neste primeiro momento, os casos, e em consequência as mortes, aumentem.

E escrevam o que o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta diz: cuidado com o uso que Bolsonaro pode fazer de eventuais acidentes de percurso. Se uma pessoa já contaminada for vacinada em período de incubação, corre o risco, sim, de pegar uma forma grave e até de morrer. Não custa muito para Bolsonaro forçar um nexo da morte com a vacina. O fato é que, depois de perder a foto, o timing e a glória pela vacina, ele vai contra-atacar. É só questão de tempo. E como.

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