Tanto a produção da vacina do Butantan quanto a da Fiocruz
precisam de insumos importados da China, dos quais somos tão dependentes como
os chineses da nossa soja
Há
derrotas por antecipação. Geralmente, como já disse, ocorrem quando se comete
um erro de conceito estratégico. A partir daí, os planejamentos tático e
operacional são desastres sucessivos. Em tese, oficiais superiores são
treinados para serem bons estrategistas. O marechal Castelo Branco, por
exemplo, conquistou essa fama nos campos da Itália, na II Guerra Mundial, ao
elaborar o bem-sucedido plano da tomada de Monte Castelo, que veio a ser uma
das glórias de nossos pracinhas da Força Expedicionária Brasileira (FEB). Não é
o caso do general Eduardo Pazuello, ministro da Saúde, apesar da fama de craque
em logística.
O primeiro erro de conceito de Pazuello é considerar a pandemia uma guerra. Como figura de linguagem, ainda se pode dar um desconto; como conceito de política sanitária, porém, leva a conclusões equivocadas. Logo no começo da pandemia, o sanitarista Luiz Antônio Santini, médico e ex-diretor do Inca, publicou um artigo no site do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz chamando atenção para isso: “A metáfora da guerra, embora frequente, não é adequada para abordar os desafios da saúde, até porque, por definição, uma guerra visa derrotar um inimigo e, para isso, vai requerer a mobilização de recursos das mais variadas naturezas que, em geral, levam a uma brutal desorganização econômica e social do país. Essa visão belicosa, no caso de uma pandemia, além de limitar, é seguramente ineficiente”.
Segundo
o sanitarista, uma pandemia não representa um ataque inesperado de um agente
inimigo da humanidade, como a tese da guerra sugere. “O processo de mutação dos
vírus é uma atividade constante na natureza e o que faz com que esse vírus
mutante alcance a população, sem proteção imunológica, são, além das mudanças
na biologia do vírus, mudanças ambientais, no modo de vida das populações
humanas, nas condições econômicas e sociais. Muito além, portanto, de um ataque
insidioso provocado por um agente do mal a ser eliminado.” Muito provavelmente,
o que está acontecendo em Manaus, e pode se repetir em outras cidades, é
consequência de uma mutação genética do vírus da covid-19, que fez com que a
doença se propagasse mais rapidamente e a subestimação da importância do
distanciamento social e outros cuidados, como uso de máscaras.
A
pandemia não é culpa de Pazuello, mas um fenômeno da natureza. Entretanto,
deveria ter sido mitigada pelo Ministério da Saúde, enquanto a ciência busca
respostas com vacinas, medicamentos, mais conhecimentos e tecnologias. O
problema é que Pazuello não foi nomeado para o cargo de ministro da Saúde por
seus conhecimentos em saúde pública, mas porque obedece cegamente ao presidente
Jair Bolsonaro, um capitão que pauta sua atuação na Presidência pelo improviso
e, no caso da pandemia, pelo negacionismo.
Aposta errada
Por
ordem de Bolsonaro, Pazuello apostou no “tratamento precoce” à base de um
coquetel cuja eficiência é contestada pelos epidemiologistas. No caso de
Manaus, segundo depoimentos de intensivistas, a maioria dos mortos havia tomado
hidroxicloroquina, azitromicina, zinco e vitamina D, além da ivermectina. O
general foi a Manaus recomendar esse tratamento alternativo em massa, na
expectativa de que isso contivesse a pandemia, em vez de dar a devida
importância à escalada da doença, que provocou o colapso dos hospitais, a
começar pela falta de oxigênio. Pesaram na sua avaliação a sua autossuficiência
e ignorância em matéria de saúde pública.
A
mentalidade bélica também cobra um preço na questão das vacinas. O tempo todo o
governador de São Paulo, João Doria, foi tratado como inimigo por Bolsonaro,
que demitiu Henrique Mandetta por ciúmes. O ex-ministro havia alcançado grande
popularidade, ao liderar a luta contra a pandemia, e havia se encontrado com o
governador paulista para discutir a colaboração entre os governos federal e
estadual no enfrentamento da crise sanitária. À época, Bolsonaro considerava a
covid-19 uma “gripezinha”, sabotava o distanciamento social e desacreditava a
vacina, que ainda se recusa a tomar, com argumento de que foi imunizado pela
doença, embora os casos de reinfecção estejam aumentando.
O resultado todo mundo sabe. A vacina do Butantan (CoronaVac) é a única disponível até agora. O governador João Doria começou a campanha de vacinação no domingo. Pazuello corre contra o prejuízo. As vacinas disponíveis — 6 milhões de doses, equivalentes à vacinação de 3 milhões de pessoas, a maioria profissionais de saúde — são insuficientes para imunizar a população. Além disso, tanto a produção da vacina do Butantan quanto a da Fiocruz precisam de insumos importados da China, dos quais somos tão dependentes como os chineses da nossa soja. Outro erro estratégico de Bolsonaro, nesta pandemia, foi falar mal da China. Pode nos custar muito mais caro do que se imagina.
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