terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Carlos Andreazza - A imposição do mundo real

- O Globo

E aí está o governo Bolsonaro, dependente da vacina chinesa

O mundo real se impõe. E o governo federal recorrerá à CoronaVac. O mundo real se impôs. E aí está o governo Bolsonaro, dependente da vacina chinesa, requisitando a vacina do Doria, aquela, comunista!, que o presidente prometera não comprar. Nunca houve dúvida de que o faria. A questão sempre sendo a demora — a demora em imunizar os brasileiros —decorrente da irresponsabilidade.

O mundo real se impôs, mas é o atraso que importa. O mundo real se impõe sempre. Mas também se impõem os efeitos do atraso deliberado; projetando golpes adicionais de tensão sobre um já esgarçado tecido social. A oferta de imunizantes, por óbvio, não é infinita; sendo provável, por consequência, que, já havendo vacinas aptas, não haja doses suficientes para todo o primeiro grupo de prioridades, de modo que seria necessário definir prioridades entre prioridades.

O fim da fila em que se encontra o Brasil é obra exclusiva de Bolsonaro, o maior agente antivacinação do mundo — tocador de uma campanha de desinformação e descrença na praça desde março de 2020.

Jamais foi a preocupação com a economia popular o que o motivara a pregar contra o distanciamento social. Ou teria de ser um obcecado pela vacinação em massa. Como se vê, consiste no próprio empecilho. Seu propósito é não apenas o espalhamento do caos, mas sua constância. Bolsonaro se dedica à sustentação de um estado de calamidade por meio de que alimenta um governo calamitoso.

Torceu pela segunda onda. Trabalha para que perdure. Seu governo — sua própria existência competitiva — depende da anormalidade. O fenômeno reacionário que encarna depende da imprevisibilidade. Nada melhor do que uma pandemia que permaneça para muito além do que seria o tempo possível de o Brasil domá-la. Nós ainda não vacinamos porque Bolsonaro não quis.

A pandemia que mata brasileiros novamente aos mil por dia é a mesma por meio de cujos impactos desorganizadores da economia o presidente acredita poder justificar a incapacidade do governo. A pandemia como desculpa. A pandemia em cujos efeitos paralisantes sobre a política aposta para neutralizar qualquer tentativa de impeachment. A pandemia como escudo. A pandemia de cujo desarranjo social aprofundador da miséria extrairá a licença para o livre exercício de seu populismo autoritário com vista a 2022. A pandemia como eleitora.

O ano eleitoral chegará e, depois de um 2021 terrível, em que o governo terá sustentado a circulação do vírus, veremos afinal refreada a peste, restando apenas a derrama de dinheiros com a qual Bolsonaro viajará o país para enfrentar a pobreza causada — o discurso está pronto — por governadores e prefeitos; aqueles que, fechando estados e municípios, teriam quebrado a economia popular. O discurso está pronto e testado.

O presidente foi bem-sucedido em sua cantilena de que as mortes pelo vírus seriam inevitáveis e de que era preciso enfrentá-lo sem covardia, que equivalia à reclusão. Cuidados sanitários comporiam conjunto histérico de excessos — coisa de maricas. Esse foi o discurso que prosperou, o da masculinidade heroica. Ele plantou a oposição saúde pública, coisa de elite, versus saúde econômica. Falou àqueles que não tinham reservas e que precisariam correr risco para ter comida na mesa — e que se puseram às ruas convencidos de que até usar máscara era bobagem.

Diga-se que nunca houve algo nem sequer parecido com lockdown no Brasil, mas é contra este inimigo imaginário — cerceador das liberdades — que luta e avança o bolsonarismo. Um dos pilares mantenedores da farsa de Bolsonaro é a distorção segundo a qual estaria de mãos atadas pelo STF. Uma mentira. Ele mandaria dinheiro —teria enviado mundos e fundos a Manaus —, sem mais o que pudesse fazer. Mentira.

Bolsonaro depende do clima de exceção, desde o qual também opera a vitimização. Necessita de condições que forjem a arena para crise perene — desde onde multiplica adversários. A pandemia lhe é um presente. Daí por que a pazuellização do Brasil. Um plano. A garantia de longevidade da depauperação nacional. Pazuello, general da ativa, é o boi de piranha. Não entra sozinho no rio, porém. Leva junto o Exército.

Levou o Exército consigo quando voou a uma Manaus já sem oxigênio para fazer propaganda de tratamento preventivo contra o vírus. A fixação na cloroquina é a estrela do programa de manutenção da pandemia. Um medicamento que não é eficaz. Manaus é produto da prevenção que assegura a propagação da peste. É produto do sermão bolsonarista por desobediência civil — da criminosa doutrinação bolsonarista para que as gentes se aglomerassem.

Não se chega à falta de oxigênio em unidades de saúde — algo que se mede e controla — sem letal combinação de negligência e ignorância. Num hospital brasileiro, normalmente precário, as pessoas — havendo oxigênio — são capazes de sobreviver mesmo com as faltas habituais. A falta de leitos, por exemplo. A falta de oxigênio é de outra categoria. Sobrevive-se com oxigênio ainda que deitado no chão. Sem oxigênio, será a morte. É o que produz o Ministério da Saúde de Bolsonaro, aquele que prepara — que adesiva — um avião para buscar vacina indisponível.

O mundo real se impõe. O golpismo voltará.

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