É
paradoxal que a traumática experiência dos quatro anos de agressiva passagem de
Donald Trump pela Presidência dos Estados Unidos tenha feito com que o destino
daquele país passasse a importar mais ao mundo do que já importava antes. Assim
como tornou os EUA menos auto centrados e mais permeáveis e sensíveis ao que
acontece fora dele. A pretensão isolacionista de Trump produziu efeito oposto.
Ele não entregou o muro que prometeu, contra o México e o mundo. Contra o seu
muro, construíram-se pontes e pistas que atravessaram continentes para ajudar a
república norte-americana a se defender.
Uso
de propósito o termo república e não democracia – embora esteja entre os que
não conseguem pensar uma instituição sem a outra – porque vejo na instituição
republicana, tal como se firmou nos EUA, a fonte principal da empatia que a
fórmula norte-americana suscita, mesmo em presença de crise em vários aspectos
de sua democracia e de tantos motivos de antipatia historicamente enraizados
por ações da política externa de seu Estado. Hannah Arendt, cujo pensamento serve não só de
epígrafe como de inspiração para este breve texto, frisou a originalidade da experiência
fundacional norte-americana, a um só tempo revolucionária e criadora de um tipo
de governo fiel ao espirito da revolução da qual partiu, isto é, governo
limitado pela lei. A proteção de direitos de cidadãos contra a opressão do
poder político institucionaliza a liberdade, causa da revolução.
Contraste significativo, mostra Arendt, com rebeliões modernas que libertaram povos de opressões - como a do Antigo Regime da bastilha e a da grande Rússia dos czares (e às quais podemos acrescentar a de títeres cubanos de plutocratas e mafiosos e tantos outros exemplos) – mas após as quais o sentido de revolução foi perdido quando seus processos políticos não construíram a liberdade, seu fundamento. Cair sob o jugo de algum tipo de “Conquistador” seria a sina de rebeliões que não se fazem acompanhar de uma revolução, no sentido político de restauração/recriação da liberdade como experiência e/ou razão.
Em
contraste com tais experiências agonísticas esteve sempre a realidade de contra
revoluções que, sobre o fogo fátuo das insurreições desacompanhadas de política
positiva, viabilizaram governos limitados como opções pacificadoras da
violência de revoluções refratadas. Nesses casos, pontua Arendt, constituições levam
a governos limitados que não são sinais de vitória moderada de aspirações
revolucionárias, mas da sua derrota.
Como
coisa distinta de ambas as situações sumariadas, levanta-se o caso singular da
República norte-americana. A forte conexão de sentido, tanto no campo dos
argumentos racionais, quanto no da análise histórica, entre o momento-libertação
(a guerra da Independência) e o da construção da liberdade (da Declaração da
Independência à Constituição, passando pelo amplo debate popular da questão
federativa) deixa claro, para nossa autora inspiradora, que os fundadores da
República americana não cometeram o equívoco de imaginar que poder e lei
poderiam emanar da mesma fonte. O poder popular concilia-se com a liberdade
política quando a lei - sua elaboração, aplicação e guardiania – provém de
diferentes poderes derivados de uma autoridade política constituída e fundada
no princípio representativo. Autoridade cujo mister é proteger o cidadão da
opressão do poder, inclusive do poder que emana direto da fonte legitimadora da
própria República. Numa palavra, na
República norte-americana não há poder soberano, nem o do povo, pois a premissa
é que a liberdade requer governo e governo legítimo é governo limitado.
É
sobre esse estuário institucional (governo da lei, não de pessoas), compactado
como tradição por uma cultura política associativa, que a democracia americana
trafega como presente continuo, entre avanços e recuos, tendo como resultante
um processo cumulativo de inclusão política.
A violência, que todos apontam (alguns com desagrado, outros com admiração)
como marca de um modus operandi da história daquele país, comparece nos vários
momentos dessa construção democrática bissecular, mas encontra no estuário
republicano uma força de atenuação, que é civilizatória. Sua eficácia pode ser
percebida quando se compara a violência em estado bruto, de guerra, que marcou
o fim da escravidão, há um século e meio, com enfrentamentos de uma década de
conquista de direitos civis, há meio século, daí com lutas que permitiram a
significativa eleição de Barack Obama há uma década e com vitoriosas frentes
políticas de agora, pacientemente construídas para enfrentar o trumpismo,
impulsionadas por gigantescas manifestações de protesto pelo assassinato de
George Floyd. A visão dessa floresta é a
da República como hardware seguro ao qual de acopla a democracia como software
em constante atualização.
Foi
contra esse edifício monumental, sediado na história e na cultura política de
seu país, que Donald Trump jogou seus apoiadores no último dia 6. O Capitólio é o edifício símbolo do hardware
que os norte-americanos construíram para se fazerem representar e serem protegidos
de efeitos malévolos de dissensões sempre presentes entre eles. Ao arremessar
contra o Capitólio uma parcela radicalizada de pessoas desatentas à dimensão
protetiva do edifício, quis induzi-las a destruir/desmoralizar um hardware sem
o qual eles próprios seriam inimigos vencidos e destituídos de qualquer
direito. E como poderiam, de algum modo, na ausência desse hardware, tentar introduzir
seu software extremista? Contra quem e contra o que poderiam mobilizar seu pathos
destrutivo? Se por acaso não fossem tão fragorosamente fracassados, como foram,
ficariam parados no ar, rebelião seguida de anomia, não de novo poder. Agora
que a República prevaleceu, eles continuarão tendo a chance de tentar, desde
que respeitem o hardware. Chance condicional, não excluindo que insuflador e
insuflados respondam pelo atentado, já que o governo é da lei.
Mas
eles quem? Todos os cara-pálida? É outra pergunta pertinente depois desses
eventos. Prever o que será e como se comportará o trumpismo findo o governo
Trump é, ainda, um exercício para videntes e dele me pouparei porque me falta
esse talento. Entretanto, há uma questão correlata que pode ser aqui arranhada
por uma evidência que salta aos olhos. Já começou a disputa de narrativas no
campo oposto ao de Trump. O desfecho que o isola (ao menos momentaneamente) significa,
para certos analistas politicamente engajados, a implosão do Partido
Republicano ou o seu enfraquecimento a ponto de perder capacidade de polarizar
com os Democratas, que tenderiam a ocupar bases do rival desorientado. Como não
há ambiente propicio a partido único e atribui-se a Trump uma atitude
anti-sistêmica cada vez mais ostensiva, vislumbra-se, à esquerda, a chance (ou
o desejo) de que o Partido Democrata venha a ser a nova força conservadora na
política norte-americana, abrindo espaço, a médio prazo, para-o surgimento de
uma “nova” esquerda. Até porque,
conforme essa narrativa, a nova polarização política tende a estar impregnada
pela questão racial e a noção de pluralismo – caríssima à tradição política do
país - passa a assumir, nesse registro, uma conotação mais societal,
enfatizando clivagens. A tese parece ser que hoje saem derrotados o trumpismo e
o supremacismo radical. Amanhã será a banda moderada com a qual se identifica
Biden e que será chamada a defender a herança da “sua” democracia branca. Não
se distingue, no discurso, lugar para a “nossa” República. Deve-se assinalar
que boa parte do movimento político anti racista parece estar evitando esse
consequencialismo identitário e tem apostado firme na via eleitoral, formando
frentes amplíssimas. A ver se é uma atitude política sustentável ou mais uma
tática defensiva motivada pelo fator Trump.
Para
outros analistas, o isolamento de Trump conduziria a uma retomada, pelo seu
partido, agora na oposição, do lugar de direita democrática que lhe cabe. Até
porque a tendência da política de Biden, tendo ao lado a vice Kamala Harris,
seria reforçar uma inflexão “à esquerda”, justamente para evitar que, nesse
quadrante político, algo de relevante se descole do partido e passe a querer
polarizar com ele. É jogo futuro, mas essa segunda hipótese guarda maior
sintonia com a interpretação de que quem derrotou Trump foi o instinto de
República e não o clamor por uma democracia de novo tipo. Em vez de uma “nova
democracia”, uma democracia que se renova graças à robustez da República. Quanto
mais atores políticos relevantes - no Capitólio, na Casa Branca, em Wall Street
e na malha associativa de movimentos sociais em geral e de movimentos políticos
anti-racistas se deixarem persuadir por
esse segundo caminho, mais laços haverá com o mundo exterior, para o qual a
República que há na América segue sendo referência.
Desdobramento
lógico e prático dessa discussão é perguntar o que tudo isso tem de fato a ver
com o mundo externo aos EUA, Brasil incluído. Tema de outra coluna,
provavelmente a da próxima semana, se fatos do nosso próprio país não furarem a
fila. Como gancho, deixo a sugestão de reflexão sobre se o fim da aventura
trumpista inspira mais dúvida ou mais confiança na hipótese de que instituições
robustas e atitude política republicana possam domar um populista de
extrema-direita no poder e o impeçam de detonar o edifício.
*Cientista político e professor da UFBa.
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