É
difícil imaginar o que seriam mais quatro anos do mesmo a partir de 2023
É
Eduardo Giannetti quem aponta a importância de distinguir as três modalidades
fundamentais de catástrofes humanas. Duas são bem conhecidas: os desastres
puramente naturais, como terremotos e tsunamis, e as calamidades que o ser
humano impõe ao próprio ser humano, como guerras e ataques terroristas. A
terceira categoria é feita dos eventos que resultam da ação humana, mas não
da intenção humana. Este artigo se propõe a discutir uma vertente
deste último tipo de catástrofe: os desastres provocados por consequências não
intencionais de ações e omissões de governos, combinados com excesso de
complacência e desinteresse pela coisa pública por parte expressiva da
sociedade.
Nos EUA, o húbris de Donald Trump encontrou sua nêmesis em Joe Biden. A arrogância, imoderação, ganância e audácia excessiva de Trump perderam a eleição para Biden, que personifica o oposto simétrico dessas características: ausência de arrogância e ganância, moderação, audácia sem excessos. Mas Trump resta um fenômeno cuja compreensão justifica esforço detido. Seus quatro anos culminaram, em 6 de janeiro, com a inacreditável invasão do Congresso por uma turba por ele insuflada. Bolsonaro, também ele um fenômeno, perde agora seu ídolo e modelo político. Talvez tenha registrado o repúdio claro das instituições norte-americanas ao inédito desvario de Trump e seus fiéis, cujo comportamento mostra absoluta falta de espírito democrático e deixa clara a propensão ao autoritarismo. Que poderia funcionar, como já funcionou, em dezenas de países desprovidos de freios, filtros e contrapesos institucionais, e de uma mídia profissional independente, como há nos EUA. E como esperamos manter no Brasil, apesar de tudo.
Nos
últimos três quartos de século o Brasil teve, antes de Bolsonaro, oito
presidentes eleitos diretamente pelo voto popular: Dutra, Getúlio, Kubitschek e
Jânio, antes do regime militar, e depois deste, Collor, Fernando Henrique, Lula
e Dilma. Desses oito, quatro não concluíram o mandato para o qual haviam sido
eleitos. O placar está em 4 x 4 e será em algum momento desempatado por Jair
Bolsonaro. Dos presidentes mencionados, apenas três (JK, FHC e Lula)
transmitiram o cargo a outro presidente também eleito diretamente pelo voto
popular. Apenas um (Lula) não só recebeu, como passou o cargo a alguém também
eleito (eleita, no caso) pelo voto popular.
Dores
do processo de consolidação de uma jovem democracia, dirão. Mas essa
instabilidade, e a própria eleição de Bolsonaro, tem raízes profundas, que
cumpre identificar, quanto mais não seja para tentar evitar em 2022 a reedição
da polarização que se viu em 2018, na qual tanto se empenham Bolsonaro e seus
seguidores fiéis, incluindo a ativa e agressiva militância das redes sociais.
Repetidas
vezes comento neste espaço as aspirações do eleitorado e da sociedade desta que
é a terceira maior democracia de massas urbanas do mundo. São demandas por
infraestrutura física e humana (saúde, educação) e, crescentemente, por combate
à pobreza e à desigualdade de renda e de oportunidades. A capacidade do poder
público de oferecer respostas a todas essas demandas é sempre insuficiente.
Nesse espaço de frustração, populistas e demagogos apresentam suas promessas
eleitorais, fadadas ao descumprimento.
Marcus
André Mello refere-se ao “lado da oferta” desse descompasso: a medida em que a
capacidade de atender às aspirações e expectativas é limitada por problema
político-institucional fundamental. A saber, a combinação de presidencialismo
forte, multipartidarismo fragmentado, federalismo robusto e partidos fracos,
que dificulta sobremaneira ao Poder Executivo qualquer esforço voltado para a
construção de base de sustentação parlamentar capaz de aprovar sua agenda. A
tarefa já é momentosa quando o governo federal é capaz de se coordenar internamente
para, então, dialogar com o Congresso. Quando nem isso consegue, acentua-se a
incapacidade de dar respostas adequadas. Aqui estamos, e é difícil imaginar o
que seriam mais quatro anos do mesmo, a partir de 2023.
Em
seu belo artigo de final de ano, Desafios para 2021 e depois, na Folha
de S.Paulo, Arminio Fraga externou um pingo de otimismo: “As deficiências
são tantas que há um amplo espaço para melhorias. Um (outro) governo, com visão
e capacidade de execução, poderia acelerar bastante o crescimento”. Tendo a
concordar. Mas para tal seria necessário que o eleitorado brasileiro estivesse
preparado em 2022 para, pelo voto, tornar aquele o último ano da era Bolsonaro.
Como
fez o eleitorado norte-americano ao barrar o ano 5 da era Trump. Desfecho
alcançado a duras penas, em larga medida pela desastrosa condução do combate à
covid-19. Até então Trump estava em marcha batida para a conquista do segundo
mandato. Havia razões para crer que lograria êxito: o bom desempenho da
economia, seu inegável apelo político-eleitoral e, não menos importante, as
divisões do campo adversário, até a tardia consolidação em torno de Biden. Para
países obrigados a lidar com aqueles que têm Trump como modelo, há relevantes
lições a extrair. Ainda há tempo – mas não muito.
*Economista, foi ministro da fazenda no governo FHC
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