domingo, 10 de janeiro de 2021

Míriam Leitão - Incutir a dúvida, colher a certeza

- O Globo

Quando o presidente da República diz que houve fraude nas eleições de 2018, ele está acusando a Justiça Eleitoral de cumplicidade ou negligência com o crime. Ou a Justiça fez parte da fraude ou não foi capaz de garantir a lisura do processo eleitoral. Diante disso, o que fazer? A Procuradoria- Geral da República (PGR) teria que notificar o presidente para a apresentação das provas, dado que ele está publicamente dando a notícia de um crime. O PGR nada faz que incomode o presidente.

Tudo se passa no Brasil como se a democracia não pudesse se defender de um ataque que está sendo preparado lenta e consistentemente. Em parte, me explicou uma autoridade do Judiciário, “porque tudo é muito inusitado”. Em parte, porque o PGR foi neutralizado. O presidente Jair Bolsonaro não está agindo por impulso. Está repetindo há dois anos fatos sem comprovação. Ele está incutindo a dúvida para colher a certeza. E nada se faz, além das notas de repúdio, porque é inusitado que um presidente da República conspire contra a democracia. Só que está acontecendo. Aqui e nos Estados Unidos.

Bolsonaro age de caso pensado e de forma coerente. Ele tem um plano e dois anos pela frente para executá-lo usufruindo da imunidade que o cargo lhe dá. O objetivo dele no final todos conhecem. A democracia brasileira não tem sabido usar os instrumentos para se defender. Esta semana ele deu um passo adiante ao fazer uma ameaça. A de que ocorreria aqui algo mais grave do que o que houve nos Estados Unidos caso o voto não seja impresso.

O presidente brasileiro justificou o que houve nos Estados Unidos. Bolsonaro disse que foi causado por fraude, e ela surgiu porque “potencializaram a tal da pandemia”. Com isso ele está alimentando duas mentiras. A de que a pandemia foi “criada” com um propósito. E a de que houve fraude nos Estados Unidos. Isso justificaria o ataque ao capitólio, pelo que se depreende dessa fala. De forma terminativa, garantiu: “ninguém pode negar isso aí.” Todos os tribunais americanos recusaram as alegações de Trump de que houve fraude, todos os estados, mesmo os governados pelos republicanos, certificaram a eleição. Ou seja, todo mundo pode negar isso aí que o presidente brasileiro está afirmando.

A democracia americana tem 200 anos e foi alvo de um ataque. Trump estimulou durante semanas a invasão do capitólio. E mesmo sendo um lame duck, um governante em fim de mandato e com poderes declinantes, as instituições dos fundadores da Pátria americana não foram capazes de evitar o assalto. Foi preparada a conspiração à luz do dia e pelas redes sociais. O presidente usou o aparato da presidência para falar aos seus seguidores no dia mesmo do atentado. E toda a reação é a posteriori.

Nós temos uma democracia jovem que já passou por duros testes. O general Etchegoyen, que foi ministro do governo Temer, disse numa entrevista a Andréa Jubé do “Valor” que o Brasil despreza a força da nossa democracia. “A cada tosse, achamos que ela não vai aguentar.”

Mas como não ter dúvidas se o próprio general é capaz de fazer a seguinte afirmação: “Qual a atitude efetiva de Bolsonaro de desapreço à Constituição Federal, comparável a de alguns ministros do STF que não se constrangeram em agredir a gramática para dar sustentação à esdrúxula tese de apoio à reeleição, na mesma legislatura, dos presidentes das duas Casas do Congresso?”

No STF, venceu o respeito à proibição da reeleição na Câmara e no Senado. Alguns ministros queriam ignorar o sentido da palavra “vedado”. Mas o general usa esses votos, que acabaram derrotados, para abonar o que Bolsonaro já fez. Ele não acha que seja atitude efetiva de desapreço pela Constituição o presidente participar de passeatas pedindo o fechamento do Congresso e do STF. Mesmo quando Bolsonaro foi para um desses eventos no helicóptero da Aeronáutica, tendo o ministro da Defesa a bordo, e disse que as Forças Armadas estavam com eles. O difícil, general, é encontrar demonstrações de apreço de Bolsonaro pela Constituição. Desapreço, há muitas. Etchegoyen é um general de pijama, hoje na iniciativa privada. Mas defende que Bolsonaro nunca mostrou desapreço pela democracia.

Diante dessa falta de sensibilidade para as afrontas à lei por parte de líderes políticos e militares, o presidente continua semeando dúvidas sobre o sistema eleitoral para colher o caos quando for a hora.

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