No
dia seguinte, Mitch McConnell, assim despojado de sua maioria no Senado, emitiu
uma repreensão contundente contra Hawley e os demais. Derrubar os votos do
colégio eleitoral “causaria danos à nossa república para sempre”, disse
McConnell, que raras vezes é acusado de agir com base em princípios. Minutos
depois, as “pessoas especiais” de Trump se lançaram à invasão do Capitólio - o
que, por sua vez, encorajou os republicanos mais experientes a criticar o
presidente de maneira mais direta do que jamais haviam ousado.
O senador Tom Cotton, do Arkansas, antigo defensor de Trump, disse
que “já era hora” de ele “parar de enganar o povo americano”. Liz Cheney, a
terceira na hierarquia republicana da Câmara, disse que “não há dúvidas” de que
Trump “incitou a multidão”. Até mesmo alguns trumpistas mais ferrenhos se
juntaram ao coro. Uma declaração notável feita pela Associação Nacional de
Fabricantes, até então pró-Trump, pediu a Pence que considerasse invocar a 25ª
Emenda para remover o presidente do cargo.
Ainda está longe de ser um repúdio generalizado a Trump por parte
do establishment republicano. E, sem esse repúdio, é difícil imaginar que o
presidente abrirá mão de sua força dentro do partido, o que daria a este a
oportunidade de voltar a se comprometer com as normas democráticas.
No entanto, esse repúdio agora parece mais imaginável. As líderes
de torcida do presidente na mídia conservadora, todas obcecadas por lei e
ordem, talvez achem difícil ignorar as imagens do Capitólio invadido por
delinquentes MAGA. Talvez tenham dificuldade até de atribuir a culpa à esquerda
democrática (embora algumas já tenham tentado).
O americano médio, ainda que sob intensa polarização, não gosta de
violência de turbas e preza pelos símbolos de sua democracia. Um comentarista
lembrou a mudança no apoio da população aos republicanos em 1995, depois que
Timothy McVeigh, integrante do tipo de milícia que diz amar a liberdade até
então defendida pela direita, explodiu um prédio federal em Oklahoma, matando
168 pessoas. O paralelo é inexato, mas indica até que ponto Trump e suas tropas
de choque parecem ter ultrapassado os limites.
Antes mesmo dos eventos desta semana, entre a maioria dos
republicanos mais experientes parecia muito forte a convicção de que Trump
manteria sua preeminência sobre o partido - um caso de síndrome de Estocolmo,
talvez. “A base acha que Trump é um mártir”, disse um senador republicano.
“Pelos próximos dois anos, talvez quatro, ele vai conseguir ferrar todo mundo
nas primárias, sem levantar um dedo”. Isto pode se revelar correto.
Ainda assim, os eleitores querem um vencedor, e é por isso que
Grover Cleveland foi o único presidente com mandato único a ter sido reeleito
para o cargo, em 1892. E, depois que Trump deixar a Casa Branca e desaparecer
da vista diária, mais e mais republicanos talvez comecem a enxergar aquilo que
o mito da eleição roubada pretende ocultar: sua fraqueza eleitoral.
Os proponentes do mito citam os muitos novos eleitores que ele
atraiu em novembro para explicar por que Trump não poderia ter perdido. Mas
para tanto seria necessário fechar os olhos (como faz Dittrich) para o fato de
que Biden atraiu muito mais gente. Em uma eleição que teve comparecimento
recorde para ambos os partidos, o democrata ganhou os 6 milhões de eleitores
que já haviam votado em algum candidato de outro partido por uma proporção de 2
para 1. E conquistou eleitores de primeira viagem pela mesma proporção.
Trump também impulsionou a maioria dos candidatos republicanos ao
Congresso. Seu partido teve um ganho líquido de dez cadeiras na Câmara e quase
manteve a maioria no Senado, mesmo que ele tenha perdido a disputa presidencial
por uma margem considerável. Isto sugere que os republicanos podem ter um belo
futuro pós-Trump.
Apesar de suas derrotas esta semana na Geórgia - estado cujo
eleitorado jovem e plural há muito tem apresentado tendências democratas - a
marca republicana não foi muito prejudicada pelos anos Trump. O partido também
tem uma grande vantagem na toxicidade contra a esquerda democrática, sobre a
qual seus candidatos falaram incessantemente durante a campanha, o que parece
ter sido especialmente eficaz na conquista dos latinos.
Carlos Curbelo, ex-congressista do sul da Flórida, onde novos
apoiadores latinos ajudaram o partido a ganhar duas cadeiras na Câmara,
descreve esse avanço como “um grande processo, a coisa pela qual os
republicanos estão mais animados”. Ele o considera um indicador do futuro ideal
para o partido: uma coalizão multiétnica dedicada a fornecer soluções de
mercado para os grandes problemas - como, por exemplo, a mudança climática -
que a esquerda tende a lançar sobre os ombros do governo.
Estas são conjecturas razoáveis. Sublinham o fato de que a
trajetória futura do partido ainda não está definida. Ninguém previu Trump em
2012. E o efeito perturbador de seu desprezo pelas verdades conservadoras
provavelmente aumentou as possibilidades ideológicas da direita. A maioria de
seus 16 oponentes nas primárias de 2016 repetia os mesmos slogans do
reaganismo.
Uma disputa equivalente hoje poderia apresentar o conservadorismo
pragmático do governador de Maryland, Larry Hogan, a sinofobia febril de Cotton
e o populismo governamental do senador Marco Rubio, todos os quais, até certo
ponto, foram moldados ou promovidos em resposta a Trump. Mas esse futuro
pós-Trump mais feliz para o partido do presidente até agora é só uma
possibilidade teórica.
A realidade do populismo de Trump não é o pensamento conservador
heterodoxo - que produziu poucas políticas dignas de menção nos últimos quatro
anos -, mas as fúrias dos populares que irromperam no Capitólio esta semana. E
reprimi-los não será fácil, mesmo se Trump for embora. Na verdade, eles são
anteriores ao presidente.
Movimentos populistas de base vêm emergindo na direita ao longo
das décadas, por razões diferentes, mas com o compromisso característico de
purgar o establishment conservador e a tendência de cair na paranoia e nas
teorias da conspiração. A Ameaça Vermelha de Joseph McCarthy na década de 1950
deu lugar ao movimento de Barry Goldwater na década de 1960, ao reaganismo mais
apresentável na década de 1970 e aos seguidores de Gingrich na década de 1990.
O padrão normal, observa o historiador da política Geoffrey
Kabaservice, era que os insurgentes se levantavam, conquistavam o poder e então
se acomodavam ao governo. Com isso, eles se tornavam o novo establishment e,
por sua vez, eram também desafiados e derrotados. Mas, na última década, à
medida que a insegurança econômica se cruzou com a polarização política e a
aceleração da mudança cultural e demográfica, as ondas insurgentes de direita
ficaram mais frequentes e mais radicais.
O Tea Party, que estourou no ano de 2010 em resposta a uma
economia difícil e a Barack Obama, levou 87 conservadores radicais ao
Congresso. Mas, uma vez ali dentro, eles não demonstraram nenhum interesse em
se acomodar. Ao contrário, propagaram a conspiração racista quanto ao local de
nascimento de Obama.
Atacaram o bipartidarismo, o governo em geral e até mesmo seus
líderes partidários (expulsando o ex-presidente da Câmara, John Boehner, antigo
seguidor de Gingrich). A paralisação do governo em 2013 e a campanha para
“revogar e substituir” o Obamacare por absolutamente nada tiveram suas
assinaturas.
Em vez de serem derrotados, eles se transformaram na multidão MAGA
que desde então disseminou versões mais radicais de si mesma, como os
ultra-trumpistas do QAnon, movimento comprometido com a missão de farejar círculos
de pedófilos socialistas em Washington. “Desapareceu aquele velho padrão de
avanço, consolidação, acomodação e renovação do conservadorismo”, escreve
Kabaservice. “Em seu lugar se colocou uma coisa que parece #MAGAparaSempre”.
Esse processo também pode ser visto de perto em Wisconsin, onde a
onda do Tea Party ajudou a levar ao poder, pelas mãos de Scott Walker, aquilo
que a princípio parecia um novo e ousado experimento de governo conservador. No
entanto, a base republicana do estado, incitada pela mídia conservadora, acabou
se mostrando menos movida pelo sistema de vouchers escolares de Walker do que
por uma hostilidade racial contra o outro lado.
Em um estado-pêndulo, até então conhecido por uma espécie de
cortesia bipartidária, uma extrema manipulação dos distritos eleitorais
perpetrada pelos republicanos em 2011 deu ao partido uma supermaioria na
legislatura estadual. Isto desobrigou os republicanos do Wisconsin de falar aos
eleitores indecisos, a tradicional força de moderação.
Eles aprovaram medidas de identificação de eleitores que
diminuíram a participação de não brancos na diversa Milwaukee, ajudando Trump a
ganhar o estado em 2016. Quando Walker e o procurador-geral do estado perderam
as eleições em 2018, a legislatura aprovou leis para retirar os poderes de seus
cargos antes que seus substitutos democratas pudessem assumir. Este foi um
estudo de caso sobre o abandono dos republicanos de duas normas que Levitsky e
Ziblatt consideram essenciais para uma democracia segura: tolerância e respeito
mútuo.
Enquanto isso, a base republicana estava ficando mais radical. Os
republicanos de Waukesha, até então um baluarte do reaganismo rico, foram
transformados por um influxo de superfãs de Trump. Muitos são brancos da classe
trabalhadora, sem nenhum vínculo anterior com o partido, que acham que Trump
está em guerra contra o establishment corrupto de Washington.
Dittrich diz que esses eleitores agora respondem por 70% de seus
membros. “Eles não reclamam de serem chamados de republicanos porque apoiam o
presidente Trump”, diz ele. “Mas, se sentirem que o partido não está apoiando o
presidente Trump, eles provavelmente não serão tão leais quanto os republicanos
foram no passado”. Em setembro, a mãe de Kyle Rittenhouse - miliciano de 17
anos acusado de matar duas pessoas durante um protesto Black Lives Matter em
Kenosha, Wisconsin, no mês anterior - participou de um jantar da organização
Mulheres Republicanas do Condado de Waukesha. Ela foi ovacionada de pé.
Isto ilustra por que os eleitores republicanos podem, de fato,
continuar excepcionalmente fiéis ao seu líder derrotado - e como será difícil
trazê-los de volta à moderação, mesmo que não o façam.
Eles são uma nova base, dominada por homens brancos da classe
trabalhadora que ouvem a raiva do presidente contra os establishments liberal e
conservador como uma expressão de suas próprias frustrações em um país sob
rápida mudança. Eles fazem o Tea Party parecer construtivo.
Trump introduziu na corrente conservadora dominante uma política
de emoção e oposição estúpida, tão distante do comunismo quanto da filosofia de
governo do reaganismo. “Se Reagan estivesse por aqui hoje, seria muito difícil
convencer o Partido Republicano de que ele era um conservador ferrenho”, admite
Dittrich sobre seu antigo herói. Por sua vez, o simpático presidente do partido
afirma ter “ficado um pouco mais conservador”, uma evolução que ele acha
difícil de explicar, embora a contraste com seu antigo entusiasmo pelo
bipartidarismo.
É bem difícil imaginar a direita voltando deste estado fanático
para o reaganismo moderado de Hogan, governador de Maryland. A ideia de Rubio -
que é essencialmente manter os eleitores da classe trabalhadora a bordo de
políticas econômicas populistas e, ao mesmo tempo, baixar o volume da mensagem
cultural o suficiente para atrair de volta alguns suburbanos - pode ser mais
promissora.
Ainda não se sabe se as políticas mais sérias desse populismo
industrial diferem muito das da centro-esquerda, só despojadas de suas
preocupações ambientais. Elas também não geraram quase nenhum entusiasmo entre
o establishment pró-negócios do partido. Mas existe aí uma lógica política
convincente. E está claro que quase qualquer trajetória que possa levar o
Partido Republicano de volta ao governo, até mesmo o ressentimento cultural,
deve ser bem-vinda.
McConnell e sua facção republicana deveriam ver a iminente
possibilidade de cooperação com o governo Biden como uma oportunidade para este
fim.
O presidente eleito é um veterano negociador do Senado, disposto a
governar a partir do centro. E a estreita maioria democrata no Senado não dará
ao seu partido outra opção a não ser tentar fazer exatamente isto.
O senso comum diz que McConnell, veterano da oposição desleal, não
vai querer participar desse processo - assim como ele obstruiu o governo Obama.
Mas, em retrospecto, talvez ele calcule que essa estratégia não funcionou muito
bem para seu partido.
Essa dinâmica empurrou Obama para a esquerda e ajudou a alimentar
a crescente fúria partidária da direita. O que, por sua vez, acabou gerando o
Tea Party, Trump e a vergonhosa guinada antidemocrática entre os republicanos
do Senado - à qual, é preciso reconhecer, McConnell se opôs firmemente.
É de se imaginar que ele e seus colegas republicanos machucados
por Trump não queiram passar por tudo isso mais uma vez. Trabalhar com Biden
para consertar alguns dos problemas mais graves do país seria um sinal de que
eles de fato não querem. / Tradução
de Renato Prelorenzto
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