O
Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso foram amortecedores dos conflitos
gerados pela mentalidade castrense e centralizadora que predomina no Palácio do
Planalto
O
ano de 2021 começa com sinais fortes de que será marcado por muitas tensões
políticas e poucas entregas do governo Jair Bolsonaro. Dois episódios apontam
nessa direção: um é a guerra das vacinas, na qual o governo federal, por meio
de medida provisória, tentou requisitar vacinas, seringas e agulhas já adquiridas
pelos estados para viabilizar a campanha nacional de vacinação; o outro, o jogo
bruto do Palácio do Planalto para eleger os presidentes da Câmara e do Senado,
com apoio ostensivo, a base de liberação de verbas e loteamento de cargos, ao
deputado Arthur Lira (PP-AL), e ao senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG),
respectivamente. Vamos por partes:
A
medida provisória que pongava vacinas, seringas e agulhas dos estados foi uma
saída do ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, para resolver um
problema criado por sua própria equipe: a não-aquisição dos insumos básicos
para a campanha nacional da vacinação em tempo hábil e a aposta numa única
vacina, a de Oxford, que será produzida pela Fiocruz. São tarefas que as
equipes do Ministério da Saúde, em todos os governos, e todos os ministros que
o antecederam, tiravam de letra, porque havia expertise de gestão no setor para
vacinar até 10 milhões de pessoas por dia. Essas equipes foram desmanteladas e
substituídas por militares arrogantes e inexperientes, a começar pelo secretário-executivo
da pasta, aquele que anda com uma faça ensangüentada na lapela, o broche de
ex-integrante de unidade de operações especiais do Exército.
O papel de Robin Hood ensaiado pelo general Pazuello — tirar dos estados com vacinas para dar aos sem vacinas — foi frustrado por decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski, que proibiu a requisição das vacinas, seringas e agulhas já adquiridas por alguns governos estaduais e prefeituras, entre os quais o de São Paulo. Por ironia, a vacina produzida pelo Instituto Butantan, em parceria com os chineses, a CoronaVac, que o presidente Jair Bolsonaro tentou desacreditar, acabou sendo comprada pelo Ministério da Saúde. São 100 milhões de doses que salvarão o governo federal do vexame de não ter como começar a vacinar imediatamente a população.
O
episódio promete ter um final feliz, mas merece uma reflexão mais profunda
sobre a natureza do governo Bolsonaro e a relação que pretende manter com os
demais entes federados, a imprensa e a sociedade. Primeiro, adota os métodos da
caserna em atividades civis, o que não tem chance de dar certo. Segundo, não
compreende a natureza democrática do Estado brasileiro, regido pela
Constituição de 1988, que é federativo e ampliado, ou seja, garante a independência
dos demais poderes, a autonomia de estados e municípios, os direitos dos
cidadãos e presta contas aos órgãos de controle e à sociedade. O Ministério da
Saúde, muito mais do que o vértice, é o centro do Sistema Único de Saúde (SUS),
que tem uma gestão compartilhada horizontalmente com os demais entes federados
e outros órgãos e autarquias, e não uma cadeia de comando vertical e
militarizada, ou seja, trabalha na base da coordenação e cooperação. O ministro
da Saúde precisa fazer a sua parte e liderar; se achar que manda em tudo, vira
rainha da Inglaterra.
Congresso
Em
maior ou menor grau, esse tipo de conflito se manifesta em todas as áreas e de
todas as formas — inclusive nas Forças Armadas —, e tende a aumentar no
decorrer desse ano, em razão das crises sanitária e econômica, além da
generalizada baixa performance administrativa. Até agora, o Supremo Tribunal
Federal (STF) e o Congresso têm funcionado como amortecedores dos conflitos
gerados pela mentalidade castrense e centralizadora que predomina no Palácio do
Planalto. No ano passado, o Supremo foi fundamental para barrar os arroubos
autoritários do presidente Bolsonaro; o Congresso foi decisivo para aprovação
da reforma da Previdência, sem a qual o governo já teria se inviabilizado, e
para as medidas emergenciais adotadas durante a pandemia, entre as quais o
auxílio emergencial, do qual o presidente Bolsonaro foi o grande
beneficiário político.
Entretanto,
o Congresso também foi uma barreira à agenda regressiva nos costumes e
às medidas que atropelavam ou abduziam prerrogativas de estados e
municípios, ampliando a centralização administrativa, política e financeira da
vida nacional por parte da União. Esse é o centro do embate em curso nas
disputas pelo comando da Câmara e do Senado. No primeiro caso, o líder do PP,
Arthur Lira (AL), apoiado abertamente pelo Palácio do Planalto, foi o grande
artífice da reestruturação da base parlamentar do governo, qualificando-se como
aliado principal de Bolsonaro por ter reunido votos suficientes para barrar
qualquer proposta de impeachment do presidente da República.
Sua
eleição pode garantir ao presidente Bolsonaro, com apoio do chamado Centrão,
passar da defensiva à ofensiva, implementando propostas que visam aumentar o
poder do Executivo em relação aos demais poderes, estados e municípios, além de
restringir direitos das minorias, razão da unidade que se formou entre as
forças de oposição — PT, PDT, PSB e Rede — e o bloco articulado por Rodrigo
Maia (DEM-RJ) — MDB, DEM, PSDB, CIDADANIA, PV e PSL —, para eleger o deputado
Baleia Rossi (MDB-SP) e garantir a independência da Câmara.
É uma disputa dura, que pode ser levada para o segundo turno devido a existência das candidaturas avulsas do deputado Fábio Ramalho (MDB-MG) e do Capitão Augusto (PL-SP), que trafegam no baixo clero e na antiga base ideológica de Bolsonaro, respectivamente. No Senado, a situação é esquizofrênica: Bolsonaro desprezou os líderes do governo na Casa, Fernando Bezerra (MDB-PE), e no Congresso, Eduardo Gomes (MDB-TO), para apoiar o candidato de Davi Alcolumbre, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), que sempre dialogou com esquerda mineira. Com isso, porém, pode ter catapultado a candidatura do líder do MDB, Eduardo Braga (AM), também com amplo trânsito na oposição.
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