domingo, 10 de janeiro de 2021

Dorrit Harazim - Fim ou começo

- O Globo

A mera abertura de impeachment de Trump seria registrada de forma indelével e educativa

Karen Attiah é editora de Opinião Global do “Washington Post”. Publicou uma coluna insólita depois que bandos radicalizados em quatro anos de governo Trump tomaram de assalto o Congresso dos EUA. Seu texto simula a forma como a mídia ocidental noticia violência política em países conturbados. De cara, a jornalista descreve Donald Trump não como “presidente”, mas como “líder”. Aponta para a esculhambação geral, informando que os invasores haviam anunciado seus planos on-line ostentando camisetas com os dizeres “Guerra Civil”. Faz referência à peculiaridade dessa “ex-colônia britânica”, onde “há séculos a violência política e racial desempenha papel preeminente”. E noticia a reação inicial do presidente recém-eleito Joe Biden ao ato de sedição no Capitólio — “não representam a América real, não representam quem somos”. Recorrendo a um personagem fictício finamente criado para a ocasião, Attiah reserva sua estocada para o final do seu artigo:

A frase “isso não é quem somos” tornou-se um refrão comum em inglês falado nos Estados Unidos, diz o liberiano Alphus Huxly, professor de Literatura e Estudos Americanos. Trata-se de uma resposta automática, usada sempre que há volumosa evidência de violência dos brancos e de ataques à democracia.

A partir da lealdade de 74 milhões de eleitores a um presidente demagogo que anunciara previamente sua sedição, o mantra “não é isso quem somos” não basta mais. O próprio conciliador-em-chefe Biden, que tomará posse no dia 20 sob medidas de proteção marciais, já endureceu o tom. E mais não faz para, seguindo sua índole, não dilacerar ainda mais a nação que herdará.

Outros, então, tomaram a dianteira para tentar interromper de imediato, e com urgência, o poder do presidente mais desequilibrado, demagogo, insurreto (e talvez insano) que o país já teve. O editorial do conservador “Wall Street Journal” que pediu sua renúncia conclui que “é melhor para todos, inclusive para ele, afastar-se discretamente”. O que é uma contradição em si —nada, em Trump, consegue ser discreto ou sem confronto aberto.

Um Donald Trump entrincheirado na Casa Branca às soltas com seus fantasmas, por mais 10 dias, acende um botão de pânico mundial. Daí o telefonema da presidente da Câmara de Representantes, Nancy Pelosi, ao chefe do Estado-Maior Conjunto, Mark Milley, para se assegurar de que haverá precauções redobradas em caso de alguma ordem incongruente recebida da Casa Branca.

Em tese, a remoção forçada mais expedita poderia ocorrer por meio da Emenda Constitucional 25. Mas o instrumento exigiria o assentimento e ação do vice equilibrista Mike Pence. Pouco provável, portanto, pois a única causa de Pence nestes quatro anos foi servir docilmente ao chefe, na ilusão de emergir em 2024 como trumpista imaculado e, assim, disputar a Casa Branca. Deu tudo errado. Mas encaminhar a remoção legal de Trump em nome da democracia não faz parte do DNA de Pence. Resta, então, o pedido de impeachment acelerado, já proposto pela liderança democrata no Senado e na Câmara.

Seria um revertério colossal se, uma vez encaminhado pela Câmara, o impeachment viesse a ser aprovado pela maioria republicana que ainda domina o Senado. Também seria curtíssimo o tempo para a elaboração do processo. Ainda assim, a mera abertura do procedimento ficaria registrada de forma indelével e educativa para futuros aventureiros do poder no país. De um mesmo presidente com dois pedidos de impeachment na folha corrida, a história nunca esquece.

Também convém não esquecer que foram 147 legisladores republicanos, portanto representantes do povo, que deram lustro formal à teoria conspiratória de fraude na eleição de Biden. Alinharam-se por oportunismo eleitoral à narrativa da vitimização do eleitorado branco (leia-se, racista) e deslizaram para a covardia cívica. Foram os primeiros a emudecer diante do crescimento e do arrojo de um embrião de nação — uma nação de fanáticos devotos a um só homem.

Na tentativa de fraudar o resultado da eleição e intimidar servidores públicos, Trump fracassou não apenas porque estes se mantiveram leais à Constituição. Fracassou também porque conseguiu cercar-se de um bando de causídicos desclassificados ainda mais exóticos do que Frederick Wassef, ex-advogado da família Bolsonaro. Felizmente, também a tentativa de insurreição desta semana foi planejada e insuflada por celerados sem roteiro. O desfecho poderia ter sido ainda pior — e melhor para um líder que aposta na convulsão. “Coisa de amador”, dirão Vladimir Putin e Xi Jinping, com desprezo.

Sabidamente, grandes ocasiões não geram heróis ou covardes, apenas os revelam à luz do dia, já ensinou um sábio lá atrás. Ou, como sabia o grande escritor e dramaturgo maldito Jean Genet , “quem nunca provou o prazer da traição não sabe o que é prazer”. Está, portanto, aberta, a temporada de covardias de assessores e políticos que querem salvar a pele afastando-se na 25ª hora de Trump. Porteira também aberta para uma inevitável torrente de traições de quem acumulou humilhações do chefe e agora vai desatar a falar — ou a votar por sua remoção.

Resta no ar a frase mais inquietante da semana. Em mensagem gravada à nação para anunciar (60 dias após ser derrotado por Biden) que o país terá novo presidente a partir do dia 20, Donald Trump se despede por ora assim: “Embora isso represente o fim do maior primeiro mandato da história presidencial, isto é apenas o começo da nossa luta...”. Melhor que seja o fim.

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