É
difícil imaginar que veremos candidatos com plataformas puramente tecnocráticas
em 2022
Professor
da USP, fundador do PT, Paul Singer foi um exemplo do intelectual
ideologicamente engajado que tanto marcou o século XX. Conheci Singer em 1996,
quando participamos de um projeto comparando as experiências de África do Sul e
Brasil. Lembro dele como uma pessoa correta, boa praça e focada em promover o
bem comum.
Mas
Singer me veio à lembrança por outra razão. Assisti-o quando participou, em 1982,
de um debate pré-eleitoral, em meio à crise da dívida externa. Crise era então
uma coisa nova, depois de quatro décadas sem nunca o PIB cair. Ele contou ter
ido à periferia paulistana saber o que as pessoas pensavam sobre a crise, ao
que uma senhora respondeu: “Crise, que crise, doutor? Eu já nasci em crise”.
Desde
então, o Brasil parece essa senhora: vive em crise quase permanente. E crise,
argumenta Benjamim Moffitt, em “The Global Rise of Populism”, é o trampolim do
qual se projetam os populistas. O livro dialoga com a literatura de ciência
política sobre o que é populismo, propondo que este seja visto como um estilo
performático de fazer política. Um estilo que se tornou mais competitivo com o
menor alinhamento ideológico do eleitor e as transformações tecnológicas e
culturais recentes, como a criação das mídias sociais e o culto às
celebridades.
Quatro pontos da análise de Moffitt me chamaram mais a atenção.
Primeiro,
a literatura é consensual em ver o populista como um político que busca liderar
“o povo” na sua luta contra “as elites”, quase sempre acusadas de corruptas.
Mas quem é o povo e quem são as elites é ajustável. Para Collor, em 1989, “as
elites” eram os “marajás” do serviço público. Para Lula, pelo menos até 2002,
eram os banqueiros e os credores internacionais. Para Bolsonaro, os
representantes da “velha política”.
Segundo,
o populista defende medidas urgentes, que não podem esperar o processo político
normal, gradativo, negociado, para resolver a crise que tanto afeta o provo.
Mas a crise também é construída sob medida. Isso é feito juntando problemas: a
dificuldade de servir a dívida externa, contraída pelas elites corruptas, trava
o crescimento e gera a pobreza; para eliminar a pobreza é preciso auditar a
dívida e deixar de pagar o que não é devido.
Aqui
o populista se antepõe ao tecnocrata, que aposta no conhecimento técnico, no
respeito aos procedimentos para gradativamente avançar na solução dos
problemas: reformas que elevem a produtividade, reduzam o risco, aumentem o
potencial de crescimento. O contraste não poderia ser maior: “[a] tecnocracia e
o populismo são imagens espelhadas: uma é gerencial, a outra carismática; uma
procura uma mudança incremental, a outra é atraída pela retórica grandiosa; uma
é sobre a resolução de problemas, a outra sobre a política de identidade”.
O
desafio do populista é convencer o eleitorado que ele é ao mesmo tempo uma
pessoa comum, “um de nós”, mas também um líder fora do comum, único capaz de
resolver a crise. Para se mostrar uma pessoa comum, ele recorre aos “maus
modos”. Aqui Moffitt lembra de um ex-presidente mexicano que recebia
autoridades estrangeiras de pijamas. Me fez pensar na insistência de nosso
presidente em aparecer no Planalto de camiseta, ir a cafés populares etc. Agir
de forma politicamente incorreta é parte desse receituário, argumenta Moffitt.
Não menos porque a imprensa reage, dando-lhe ampla visibilidade junto a seus
eleitores, muitos dos quais veem o politicamente correto como coisa das
“elites”.
Terceiro,
o populismo é adaptável a diferentes ideologias. Basta ver que foi usado, com
grande eficácia, tanto por Chávez como por Trump, Collor e Berlusconi. Lula fez
carreira, até 2002, batendo no liberalismo econômico, mas quando assumiu elevou
o superávit primário e reformou a Previdência. Bolsonaro sempre afirmou sequer
ter uma ideologia econômica, remetendo as perguntas ao “Posto Ipiranga”.
Quarto,
sendo um estilo de fazer política, mais do que uma ideologia, uma estratégia ou
uma forma de retórica, o populismo é passível de ser utilizado em diferentes
graus. Moffitt cita políticos como Obama, Blair e Bush que, segundo ele,
recorreram pontualmente a algumas dessas técnicas. E, no Brasil, poucos são os
políticos que não buscam se “misturar” com o povo na época das eleições, tomar
café nos bares de rua, comer buchada de bode etc.
Impressiona
como o livro, publicado em 2016, quando Jair Bolsonaro sequer aparecia no
radar, é como um manual para entender o comportamento político do presidente.
Também, ainda que em menor grau, muito da carreira de Lula. Por isso, ele me
parece útil para pensar sobre como as eleições de 2022 podem se desenrolar.
Além, claro, de provocar úteis reflexões para quem pense em se candidatar.
As
eleições de 2018 antepuseram candidatos com uma pegada mais populista a outros
de perfil tecnocrático, que tiveram pífio desempenho eleitoral. Difícil
imaginar que veremos candidatos com plataformas puramente tecnocráticas em 2022.
Graus variados de populismo devem predominar. Mas quem serão “os povos” e “as
elites” de cada um? Como farão para mostrar serem pessoas estranhas à “velha
política” e identificados com “o povo”? Que crises se proporão a resolver?
*Armando Castelar Pinheiro é Coordenador de Economia Aplicada do Ibre/FGV, professor da Direito-Rio/FGV e do IE/UFRJ
Nenhum comentário:
Postar um comentário