Decretos
que ampliam o acesso e afrouxam o controle sobre armas de fogo desrespeitam o
Estatuto do Desarmamento
No dia 12 de fevereiro à noite, uma sexta-feira, véspera do feriado de carnaval, o governo federal divulgou quatro decretos alterando outros quatro atos do próprio governo, editados em 2019, com o propósito de ampliar ainda mais o acesso a armas de fogo e afrouxar o seu controle pelo poder público. Os novos decretos vão muito além de mera regulamentação da legislação aprovada pelo Congresso. Eles desrespeitam o objetivo e as disposições do Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826/2003). São, portanto, ilegais, merecendo pronta revogação.
O
governo de Jair Bolsonaro não apenas desrespeitou os limites do poder de
regulamentação do Executivo. Os novos atos do governo federal em relação às
armas são extremamente perigosos, facilitando a vida das milícias e de quem
deseja utilizar as armas de fogo para além das coordenadas legais. Por exemplo,
as novas medidas tornam mais precário o rastreamento de munições, o que, entre
outros danos, pode dificultar a elucidação dos crimes.
Os
quatro decretos dão a exata dimensão das prioridades do governo de Jair
Bolsonaro. No meio de uma gravíssima crise de saúde pública, com mais de 240
mil mortos pela covid-19, com consequências devastadoras sobre a situação
social e econômica do País, o presidente Bolsonaro atua não para prover vacina
para a população, mas para desregulamentar o acesso e o uso de armas de fogo.
Para agravar o quadro, Jair Bolsonaro tem sugerido que a ampliação do porte e uso de armas de fogo não tem relação apenas com a defesa pessoal. Ele já deu a entender que defende o uso desse armamento contra inimigos políticos. Em reunião ministerial de abril de 2020, Jair Bolsonaro foi explícito, ao exigir, em meio a muitos palavrões, “que o povo se arme”, pois isso seria a “garantia” de que ninguém ousará “impor uma ditadura aqui” – referindo-se explicitamente a prefeitos e governadores que haviam imposto medidas restritivas de movimento para enfrentar a pandemia. “Se estivesse armado, (o povo) ia para a rua” e, assim, desobedeceria à ordem desses governantes, disse o presidente.
Na
ocasião, ele pressionava o então ministro da Justiça, Sérgio Moro, e o ministro
da Defesa, Fernando de Azevedo e Silva, para que ampliassem o acesso da
população a armas de fogo, o que afronta a legislação em vigor. Com a Lei
10.826/2003, o Congresso procurou promover precisamente o desarmamento.
Ainda
no primeiro semestre de 2019, Bolsonaro havia defendido “o armamento individual
para o povo”, mas não para que o indivíduo preserve a própria vida, e sim para
defender “algo muito mais valoroso que a nossa vida, que é a nossa liberdade”.
Essa campanha para armar a população, ainda mais com fins explicitamente
políticos, não encontra nenhum respaldo na Constituição e nas leis do
País.
Tal
é o disparate dos quatro decretos de Jair Bolsonaro que até lideranças do
Centrão se mostraram avessas à nova regulamentação. Deputados do PL, PSD e MDB
disseram ser contrários às novas disposições do governo federal sobre as armas
de fogo. “Mais grave que o conteúdo dos decretos relacionados a armas editados
pelo presidente é o fato de ele exacerbar o seu poder regulamentar e adentrar
numa competência que é exclusiva do Poder Legislativo”, escreveu, em sua conta
no Twitter, o vice-presidente da Câmara, Marcelo Ramos (PL-AM).
No
início da semana, foi proposto na Câmara um projeto de decreto legislativo para
derrubar o Decreto 10.630/2021, um dos quatro novos atos relativos às armas de
fogo. De fato, é preciso que o Legislativo ponha fim ao descalabro do governo
de Jair Bolsonaro de liberar, fora dos limites da lei, a posse e o uso de arma
de fogo e ainda dificultar o seu controle.
Além
de defender as competências constitucionais do Congresso, trata-se de evitar
que o País fique refém de um presidente da República que, alheio às
responsabilidades do cargo, tenta criar confusão e, no limite, o caos.
O
acordo Mercosul-UE em ponto morto – Opinião | O Estado de S. Paulo
Acordo
ainda depende de um concerto político centrado na questão ambiental
Ao comentar um estudo de impacto dos acordos comerciais negociados pela União Europeia (UE), Valdis Dombrovskis, chefe de comércio do bloco, declarou, a respeito da última versão do acordo com o Mercosul, que a Europa encontrou “o justo equilíbrio entre oferecer mais possibilidades de exportação para os produtores europeus, protegendo-os ao mesmo tempo de efeitos potencialmente nefastos do aumento de importações”. Em contraste, na mesma semana, o ministro do Comércio Exterior francês, Franck Riester, em sessão do Fórum Econômico Mundial, disparou: “O aumento do comércio poderia criar mais desmatamento”. Tais episódios reforçam a percepção de que o acordo está bem ajustado do ponto de vista comercial e sua ratificação depende apenas de um concerto político centrado na questão ambiental.
Entre
os 12 acordos examinados pelo estudo, o do Mercosul responderia por 53% das compras
agrícolas. No total das importações, estima-se que em 2030 o Mercosul seria
responsável por 19% das compras – fatia menor que a de 24,5%, calculada em
2016. Em conclusão, a Comissão Europeia apontou que o acordo é positivo para a
economia e o agronegócio europeu.
Apesar
disso, as pressões contra a ratificação não devem arrefecer. As hostilidades da
França são previsíveis. Recentemente, o presidente Emmanuel Macron associou de
maneira desinformada e caluniosa o cultivo da soja brasileira ao desmate na
Amazônia. É notório – e já foi apontado por muitas autoridades europeias – que
a resistência de Macron ao acordo visa a agradar a um tempo o eleitorado
ambientalista e o lobby protecionista dos agricultores franceses. Mas o mais
preocupante é que, mesmo entre possíveis aliados no bloco europeu, as atitudes
têm oscilado entre a desconfiança e o desinteresse.
No
último semestre, o Brasil e seus parceiros no Mercosul já perderam a
oportunidade de negociar com uma liderança pragmática como Angela Merkel, enquanto
a Alemanha esteve na presidência rotativa da União Europeia. Merkel acabou por
colocar o Mercosul em segundo plano, priorizando um acordo de investimentos com
a China. Se em parte isso se deve aos interesses alemães no comércio com a
China, também revela a apatia das autoridades do Mercosul.
No
início do ano, Portugal assumiu a presidência da UE. Com outras oito nações, o
país é um dos signatários de uma carta à Comissão de Comércio europeia,
argumentando que a não ratificação do acordo não apenas pioraria a questão
ambiental, como afetaria a credibilidade do bloco e o fragilizaria em relação a
outros competidores internacionais.
Ainda
assim, num documento de 37 páginas apresentando seu programa de governo perante
a UE, Portugal citou a Índia oito vezes; o Mercosul, apenas duas; e o Brasil,
nenhuma. Já está marcada para maio uma cúpula com o primeiro-ministro indiano,
Narendra Modi, para discutir um acordo de proteção de investimentos. Com o
Brasil não há nada na agenda.
A
União Europeia está em vias de aprovar um ambicioso “Plano Verde” e a
presidência de Joe Biden, nos Estados Unidos, tende a dar novo impulso aos
concertos multilaterais em favor das ações climáticas. Se a estratégia, por
assim dizer, de confronto do presidente Jair Bolsonaro já isolava o Brasil
antes, agora o isolará ainda mais.
No
fim de 2020, a divisão da América do Sul da UE esboçou um anexo ao acordo
estabelecendo compromissos ambientais e sociais e uma provisão de recursos
europeus para combater o desmatamento na Amazônia. Mas até o momento
praticamente não se viu qualquer mobilização do Brasil para negociar os termos
desse anexo. Caracteristicamente, membros do governo, como o ministro do Meio
Ambiente, Ricardo Salles, ou o presidente do Conselho da Amazônia, o
vice-presidente Hamilton Mourão, se queixam reiteradamente de falta de
recursos, mas, quando as oportunidades aparecem, não mostram nenhuma disposição
para negociar compromissos. Não surpreende que, dia após dia, o acordo com o
Mercosul siga retrocedendo rumo ao fim da fila de prioridades europeias.
Um grande passo na OMC – Opinião | O Estado de S. Paulo
Escolha
da diretora pode ser um ganho importante para a ordem multilateral
Mais que promissora, a escolha de uma economista nigeriana para dirigir a Organização Mundial do Comércio (OMC) representa um ganho para a ordem multilateral e, portanto, para a convivência civilizada. É mais uma derrota para os inimigos do multilateralismo, como o ex-presidente Donald Trump e seus seguidores, incluído, até recentemente, o presidente Jair Bolsonaro. Quando tomar posse, em primeiro de março, Ngozi Okonjo-Iweala será a primeira mulher e a primeira personalidade africana a exercer a direção-geral da OMC, entidade hoje formada por 164 países. Mas a diretora recém-escolhida se diferencia também, e principalmente, por outras qualificações.
Com
graduação em Harvard e doutorado no MIT, a economista ocupou a diretoria-geral
do Banco Mundial, segundo posto na hierarquia, depois de 25 anos na
instituição. Foi ministra de Relações Exteriores e duas vezes ministra das
Finanças da Nigéria, participou de vários grupos e entidades internacionais,
foi copresidente da Comissão Global da Economia e do Clima e fundou em seu país
o Centro de Estudos das Economias da África.
Oito
candidaturas foram retiradas durante os estágios de seleção, iniciados em
setembro. Durante as consultas conduzidas pelo Conselho Geral, o número de
candidatos foi reduzido a cinco e em seguida a dois. No fim de outubro o nome
da nigeriana tinha apoio quase total, mas o presidente Donald Trump impediu o
consenso, apoiando o nome da ministra coreana Yoo Myung-hee. A representante da
Coreia acabou renunciando à disputa. Em seguida, o recém-eleito presidente Joe
Biden anunciou “forte apoio” a Ngozi Okonjo-Iweala.
A
mudança da posição americana envolve muito mais que a transferência de apoio à
candidata escolhida pela maioria do Conselho Geral. Durante anos, o presidente
Trump tentou usar o peso econômico dos Estados Unidos para impor sua vontade à
OMC. Impediu o pleno funcionamento do aparelho de solução de controvérsias,
componente essencial do sistema, entravando a nomeação de juízes para o Órgão
de Apelação.
Em
dezembro de 2019 o órgão ficou paralisado pela primeira vez em 22 anos. Com
recursos para serem julgados, o Brasil foi um dos países atingidos pela
interrupção dos trabalhos. Quem perguntasse algo sobre o assunto ao presidente
Jair Bolsonaro ou a seu ministro de Relações Exteriores perderia tempo ou, pior
que isso, poderia arriscar-se a ouvir algo bolsonariano-trumpista.
O
final da gestão do último diretor-geral, o diplomata brasileiro Roberto
Azevêdo, foi prejudicado pela ação do governo americano, empenhado em mandar na
OMC de acordo com o populismo nacionalista do presidente Trump. A ação
internacional da Casa Branca foi em grande parte dominada pela rivalidade com a
China.
Também
nisso o presidente Bolsonaro obedeceu à orientação trumpista, seguindo a
diplomacia americana em ação antichinesa, na OMC, em julho do ano passado. O
presidente brasileiro parece haver esquecido – ou talvez ignorasse? – a
importância da China como maior mercado importador de produtos brasileiros.
Ele, alguns de seus ministros e seu filho Eduardo mais de uma vez cometeram
agressões ao governo chinês, acusando-o, por exemplo, de usar a tecnologia 5G
para espionagem.
A
futura diretora-geral da OMC deverá trabalhar pela reforma do sistema
comercial, ajustando-o às condições do século 21 – para atender às necessidades
globais, algo muito diferente de servir ao nacionalismo trumpista. As pressões
da Casa Branca, no período de Trump, dificultaram esse programa. Terá de rever
as formas de operação da entidade. Além disso, deverá enfrentar problemas
imediatos, associados à crise sanitária.
No
primeiro pronunciamento depois de anunciada sua escolha, a economista Ngozi Okonjo-Iweala
falou sobre a urgência de cuidar dos efeitos econômicos e sanitários da
pandemia, passo indispensável para a revitalização do comércio. O Itamaraty, em
mais um passo para recompor a imagem da gestão Bolsonaro, saudou a escolha. Mas
será preciso muito mais para incluir o País no jogo da construção global.
Bolsonaro tenta ‘passar a boiada’ no preço do diesel – Opinião / O Globo
Obcecado em atender ao pedido de sua base eleitoral de caminhoneiros para que reduza o preço do diesel, o presidente Jair Bolsonaro deu a entender diante da claque de apoiadores na porta do Palácio da Alvorada que poderá incluir na cláusula de calamidade do novo auxílio emergencial um corte de impostos cobrados sobre o diesel. Seria uma manobra para não precisar cumprir a Lei de Responsabilidade Fiscal, que obriga a compensar, cortando custos, qualquer perda de receita por eliminação ou redução de imposto. No espírito do relaxamento nas regras ambientais, é como se Bolsonaro sugerisse abertamente “passar a boiada” nas finanças públicas.
Não
é aceitável que tente driblar a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), nem
sequer que venha propor sua alteração para satisfazer aos eleitores (sim, essa
é outra possibilidade estudada no Planalto). Na primeira hipótese, ele
aproveitaria que, para respeitar a legislação fiscal, será preciso, como em
2020, instituir por PEC uma cláusula de calamidade para atender milhões que
ficaram sem renda na pandemia. E colocaria nessa cláusula seu jabuti, ou
melhor, sua boiada rodoviária.
No
caso do PIS-Cofins, imposto sobre o diesel que Bolsonaro pretende reduzir, cada
centavo de queda do preço na bomba equivale a meio bilhão de reais a menos na
receita tributária. Se não conseguir passar essa “boiada” disfarçada de
“calamidade”, ele estuda suspender o inciso primeiro do artigo 14 da LRF, que
estabelece a necessidade de compensar renúncias fiscais. Para isso, precisaria
de maioria absoluta no Congresso (257 deputados e 41 senadores), por se tratar
de lei complementar. Não é difícil imaginar que o fisiologismo entraria em
ação, empurrando mais o país para um beco do qual não há saída indolor.
A
tentativa de manobra mostra que é pura dissimulação Bolsonaro fingir
preocupações com a questão fiscal (crítica, com a projeção para este ano de um
déficit primário de R$ 250 bilhões). A LRF foi aprovada em 2000, na gestão
Fernando Henrique Cardoso, como parte essencial no Plano Real. Estabeleceu
normas para dar transparência às finanças da União, estados e municípios e
criou limites a gastos de pessoal, incluindo pensões e aposentadorias,
acompanhados pelos tribunais de contas. Serve de prevenção contra o caos
monetário e fiscal semeado na ditadura militar, que emergiu com força na
redemocratização.
Por
óbvio, os mecanismos emergenciais e temporários que deverão ser acionados em
razão da crise provocada pela pandemia não existem para a prática de demagogia,
nem para desmoralizar o conceito de responsabilidade fiscal. É também
inaceitável que Bolsonaro tente alterar a lei para satisfazer aos
caminhoneiros, caso não funcione o truque da cláusula de calamidade.
Bolsonaro
sempre tenta usar atalhos para escapar dos freios e contrapesos democráticos.
Foi assim no armamentismo e no meio ambiente. Agora, ensaia fazer o mesmo no
campo fiscal. Não deixa de ser irônico que o resultado desse tipo de manobra
possa abalar seu próprio projeto de reeleição, já que o desequilíbrio fiscal
tem consequências tão indesejáveis quanto inexoráveis: pressiona a inflação,
faz o dólar disparar, reduz os investimentos, gera recessão e aumenta o
desemprego.
Acima do cálculo – Opinião / Folha de S. Paulo
Mesmo
sem condição política, conduta de Bolsonaro mantém debate do impeachment
Diz
uma máxima da política que a oposição não vence eleições, o governo é que as
perde. No contexto brasileiro, pode-se aplicar a mesma lógica a processos de
impeachment: o presidente é que cria o ambiente para sua deposição, ao cometer
crimes de responsabilidade e, sobretudo, ao perder a sustentação popular e
congressual.
A
oposição a Jair Bolsonaro, conforme
relato desta Folha, avalia que não dispõe hoje da segunda
condição. Embora a reprovação ao chefe de Estado tenha subido de já elevados
32%, em dezembro, para 40% em janeiro, segundo o Datafolha, a parcela dos que
defendem seu afastamento é de expressivos mas ainda minoritários 42%.
O
apoio ao mandatário no eleitorado —31%
consideram sua gestão ótima ou boa e 53% se opõem ao impeachment—
mostra-se grande o bastante para desencorajar a maioria do Congresso a levar
adiante um processo tão traumático.
Teme-se
também que uma tentativa derrotada em plenário, como foram as duas contra
Donald Trump nos Estados Unidos, resulte em fortalecimento de Bolsonaro e suas
fantasias persecutórias.
Mais
ainda, o Planalto desde o ano passado emprega cargos e verbas governamentais
para cooptar parlamentares de conduta fisiológica, em estratégia que teve seu
maior sucesso na eleição de seus candidatos às presidências da Câmara dos
Deputados e do Senado.
Sua
base de sustentação busca agora a prorrogação do auxílio emergencial
—providência, em si, inatacável— com o objetivo de conter o desgaste do
presidente e elevar suas chances em 2022, favorecidas pela fragmentação de
lideranças oposicionistas.
Resta
um porém a impedir que se deixe de lado o debate do impeachment —trata-se da
conduta insistentemente indecorosa de Bolsonaro, que emporcalha o cargo máximo
da República como nenhum antecessor se atreveu a fazer.
Está-se
diante de um presidente que sabotou de todas as maneiras as políticas de saúde
durante a pandemia; que declarou o intento de intervir em órgãos de segurança
para proteger familiares; que apenas em recuo tático parou de insuflar atos
contra os outros Poderes.
Seus
impulsos autoritários permanecem, como o demonstra mais um ataque a veículos de
imprensa, entre eles este jornal, que defendeu “tirar de
circulação”. É risível a ressalva de que não o faria por ser um
democrata; não o fará, isso sim, porque está submetido às regras da democracia.
Estas,
acima de qualquer cálculo político, recomendam que o Congresso exerça o papel
que lhe cabe ante os desmandos do presidente. É necessário desengavetar e
examinar às claras, conforme os trâmites legais, as dezenas de pedidos de
impeachment que aguardam decisão do presidente da Câmara.
Melhor a reforma – Opinião / Folha de S. Paulo
Correto,
projeto para mudar imposto sobre combustíveis não vai prosperar sozinho
Ao
enviar ao Congresso um projeto de
lei complementar para alterar a sistemática de cobrança do ICMS sobre
combustíveis, o governo federal cumpre os objetivos de tentar
agradar aos caminhoneiros e jogar a culpa dos preços elevados nas costas dos
governadores.
Oportunismo
à parte, a proposta pode cumprir um papel pedagógico ao chamar a atenção para
alguns dos graves problemas do regime tributário atual.
Pela
proposta, o imposto estadual passaria a ser cobrado na refinaria (não mais na
bomba) e teria um valor fixo por unidade de medida, em vez de um percentual
sobre o valor final. A arrecadação ocorreria no destino, onde o combustível é
consumido.
Tais
dispositivos explicitam algumas das inconsistências da norma atual. Uma delas é
a incidência em cascata: atualmente a tributação federal (de R$ 0,35 por litro
do diesel) entra na base de cálculo do ICMS. A proposta do Executivo eliminaria
essa duplicidade.
Entretanto
tributos em cascata estão por toda parte. Chega-se inclusive ao paroxismo de um
imposto fazer parte de sua própria base de cálculo, majorando a cobrança final
para o consumidor.
Na
prática, a chamada bitributação não é exceção, mas prática consagrada no país,
embora cada vez mais questionada nos tribunais nos últimos anos.
Outro
tema central é o local de cobrança. Hoje o ICMS incide na origem dos produtos,
o que impele os estados a concederem benefícios e isenções para atrair
empresas. É um jogo em que todos perdem, pois acumulam-se distorções e ao final
a perda de receita é geral.
Como
há muito se sabe, a saída é uma reforma tributária que leve a uma unificação de
todos os tributos indiretos em favor de uma cobrança sobre valor agregado.
O
governo federal sabe que a chance de seu projeto prosperar é nula, dado a fome
dos governos regionais por receitas e a influência dos governadores sobre o
Congresso. Com alíquotas que variam conforme as unidades da Federação, o ICMS
sobre combustíveis responde por cerca de 15%, em média, da arrecadação
estadual.
Com
boa dose de otimismo, o texto pode ao menos proporcionar algum impulso para a
tramitação da reforma tributária. Se Bolsonaro quer de fato resolver os
problemas que apontou, que aja em prol de uma proposta abrangente.
Mais um pacote nefasto para facilitar posse e uso de armas – Opinião / Valor Econômico
Bolsonaro
dificulta o rastreamento oficial de armas e munições obtidas ilegalmente
O
presidente Jair Bolsonaro nunca esteve preocupado com vacinas contra a covid-19,
nem com o número de brasileiros mortos pela pandemia (240 mil e subindo). Mas
mantém sua obsessão e prioridade de liberar o máximo possível venda e uso de
armas no país. Bolsonaro já assinou inúmeros decretos a respeito, a maioria
deles barrado pelo Congresso ou pelo Supremo Tribunal Federal - a última
pendenga é a da isenção tarifária para a compra de armas do exterior, como se
fossem um bem essencial. Na sexta-feira, editou mais quatro decretos com o
mesmo fim, um pior do que o outro - e é dever do Congresso e do Supremo
barrá-los também.
Os
Bolsonaro tem estranha fixação por armas e o deputado Eduardo Bolsonaro é um
ativo garoto propaganda dos produtos estrangeiros. Nunca os filhos e o
presidente procuraram justificar esse desejo pela necessidade de aparelhar
adequadamente o Estado para enfrentar a criminalidade e aprimorar a segurança
pública - não é disso que se trata. Nessa campanha incomum, Bolsonaro tem
procurado diminuir o controle do Exército e da Polícia Federal sobre a
autorização, uso e rastreamento de armas e munições.
No
decreto 10.627, de sexta-feira, esse objetivo é explícito. Ele estabelece que
deixam de ser produtos controlados projéteis para armas com até 12,7 mm de
calibre e máquinas e prensas, mesmo as de produção industrial, para recarga de
munições. Como se fossem brinquedos inofensivos, cessa a vigilância sobre miras
de vários tipos, inclusive telescópicas. O exame de aptidão psicológica para
manuseio de armas de fogo, deveria ser feita por psicólogos registrados na
Policia Federal. Agora, qualquer psicólogo poderá fazê-lo.
O
laudo de capacidade técnica para o uso de armas por atiradores poderá ser
substituído por um “atestado de habitualidade” expedido por entidades de tiro.
Para caçadores, colecionadores e atiradores, os decretos ficam perto de
conceder o direito de armamento ilimitado. Para eles, o Exército só terá de
autorizar a compra de armas acima da quantidade permitida: cinco unidades para
colecionadores, 15 para caçadores e 30 para atiradores.
Estas
três categorias, que já podem adquirir mil e 5 mil munições para armas de uso
restrito e uso permitido, respectivamente. Poderão, adicionalmente, adquirir
material para recarga de até 5 mil cartuchos (uso permitido) e 2 mil (uso
restrito). A capacidade de se armar foi ainda ampliada de outras maneiras. As
pessoas autorizadas poderão a partir dos decretos comprar seis armas - antes a
permissão era para 4. No caso de policiais, agentes prisionais e membros das
Forças Armadas, dos tribunais e do Ministério Público o limite sobe a 8 armas.
As
brechas abertas por Bolsonaro desde sua posse já fizeram quase dobrar o número
de armas legalmente em circulação no país. Não há, e não haverá, diminuição da
violência por esse caminho - as estatísticas de homicídios voltaram a crescer.
A predileção do presidente tem outras consequências nefastas. Bolsonaro está
facilitando a obtenção de armas pelas milícias e dificultando o rastreamento
oficial de armas e munições obtidas ilegalmente.
O
universo das milícias não é estranho à família Bolsonaro. O então deputado
estadual Flavio Bolsonaro, envolto em processo por rachadinhas, condecorou
milicianos como Adriano da Nóbrega, morto há pouco mais de um ano, e empregou
em seu gabinete familiares dele. Fabrício Queiroz, velho amigo do presidente e
funcionário de Flávio, tem ligações com essas organizações de ex-policiais e
criminosos armados.
Em
episódio nunca esclarecido, o Planalto fez pressões para a remoção de José
Nóbrega de Oliveira, delegado da Receita no Porto de Itaguaí, responsável pelo
aumento de apreensões no porto. Em 2020 ele perdeu poderes, como o de decidir
quais importações seriam fiscalizadas fisicamente, atribuição que passou a
compartilhar com a alfândega do Porto de Vitória. Oliveira se demitiu em
janeiro (Folha de S. Paulo, 16 de janeiro).
Há mais motivos, alem dos óbvios, para barrar os decretos de Bolsonaro. O presidente disse que pode haver no Brasil uma encrenca maior do que em Washington, em dezembro - o Congresso foi invadido por partidários do presidente Donald Trump, sob o argumento de fraudes - se for derrotado nas urnas. É preciso impedir que extremistas de direita - ou de qualquer credo -se armem com facilidade e ampliem seu poder de pressão e de fogo contra a democracia, pela qual Bolsonaro sempre demonstrou pouco respeito.
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