quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Roberto DaMatta - Cinzas sem carnaval

- O Globo

É possível ter cinzas sem ter feito fogo? Como penitenciar-se, se não houve pecado porque a carne não foi levada (carne-vale)? Não temos cinzas numa Quarta-feira de Cinzas...

Mas como podíamos nos esbaldar num tempo de pandemia — um tempo em que a morte não era fantasia, mas realidade?

A pandemia tem sido um carnaval de lágrimas e mortes, e a vacinação, que seria sua Quaresma, foi mal planejada e sabotada. As cinzas desta singular Quarta-Feira de Cinzas repetem sombras, e não a sensualidade luminosa e perdoável da folia carnavalesca.

Estes dias cinzentos levam a outros tempos igualmente ansiosos. É impossível não sussurrar, com Carlinhos Lyra e Vinícius de Morais, a “Marcha da Quarta-feira de Cinzas: “Acabou o nosso carnaval/ Ninguém ouve cantar canções/ Ninguém passa mais brincando feliz/ E nos corações/ Saudades e cinzas foi o que restou.../ Pelas ruas, o que se vê/ É uma gente que nem se vê/ Que nem se sorri, se beija e se abraça/ E sai caminhando/Dançando e cantando cantigas de amor...”

Seria possível tornar o carnaval, cuja origem e legitimidade é religiosa e cujo desenho remete a oposições cósmicas, um feriado normal, objetivamente histórico ou cívico, em que se comemora algo concreto?

Tenho dúvidas, porque jamais pensei em testemunhar um adiamento do carnaval, inesperadamente misturado a uma pestilência. Se é impossível transferir o 7 de setembro, o 15 de novembro, o fim do ano — ou o aniversário de casamento que você sempre esquece —, como fazer o mesmo com uma festa cósmica. Uma festa que, no credo católico, inventa o próprio tempo, pois demarca o nascimento, o sacrifício e a ressurreição de Deus na sua figura humana.

Tudo pode ser mudado, doutor, ouço um leitor. Sem dúvida, mas dá trabalho...

Um Brasil sem carnaval seria tão impensável quanto um purgatório sem almas. Ou um mundo pós-moderno sem turismo e sem as tais “aglomerações” (sem o “movimento”) que nos tornam humanos da espécie cosmopolita. Sapiens turísticos em constante movimento. Seres insaciáveis e alertas para a última novidade. Consumistas radicais que sabem do seu lugar de fala bem como dos seus desejos, mas não compreendem bem seus limites — essas disciplinas das quaresmas que também fazem parte da vida.

O carnaval não acabou. Ele foi adiado ou controlado — tal como a parte mais prazerosa de nossas vidas, devido a uma imprevista pandemia.

Quem jamais viu a morte não acredita que pessoas possam morrer contaminadas por um vírus invisível, silencioso e, tal como Deus, onipresente. Quem jamais suspeitou de sua onipotência, como quem nos governa e desgoverna, nada entendeu e ainda pensa que se trata de uma reles gripezinha.

Mas tem sido esse vírus que põe à prova nossa humanidade mostrando o que temos de pior e de melhor; e como essas dimensões — exatamente como o excesso e a disciplina (gozo e penitência) — estão interligadas.

Sem Rei Momo, fomos direto do mundo das agonias e da morte a essas cinzas do calendário católico. Esse outro lado da moeda carnavalesca, a que se junta, como num velho sermão ou milagre, um vírus revelador de uma inesperada fragilidade e, com ela, de uma esperançosa generosidade. Num mundo que nos destina ao individualismo, a pandemia nos mostra que, além de pertencermos a nós mesmos, pertencemos também a outras pessoas.

O “corona” nos esfrega na cara nossa humanidade. É tão simples quanto o riso carnavalesco que passou sem ser. Somos humanos e iguais, porque somos mortais e humanos.

A face nua e crua da morte que é o próprio real ou limite nos obriga a enxergar o todo e como esse todo é tão mal administrado por seus donos e proprietários.

Penso que o próprio adiamento (sem brasileiramente abrir mão do feriado) é um sintoma de mudança, porque o carnaval — conforme acentuei na minha obra pouco lida em Jumentolândia — é um rito de passagem de calendário tal como, em 1909, classificou o antropólogo Arnold Van Gennep no seu clássico “Os ritos de passagem”. Nesse sentido, o deslocamento do carnaval como uma defesa contra a pandemia tem um claro e sensato motivo sanitário, mas deixa em aberto a observância, reitero, de um tempo transcendente ou axial.

Minhas crônicas das Quartas-feiras de Cinzas reiteram uma velha pergunta. Afinal de contas, o que festejamos no carnaval? Essa festa sem sujeito e do riso? Nesse encontro que, no Brasil, é marcado pela igualdade do anonimato?

A pandemia, além de vidas, roubou também o carnaval e as máscaras que nele usávamos como sinal de que ninguém precisava saber com quem estava falando...

Se há angústia nas quarentenas da doença, enorme feriado carnavalesco (talvez único no mundo) nos leva a essa Quaresma especial. A 40 dias sem as honrosas dívidas dos “trabalhos” ou coerções de Dom Carnal. Eis um feriado singular. Uma pausa para nada fazer depois de uma festa em que tudo era possível, mas que não aconteceu.

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