domingo, 14 de março de 2021

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

Nem o diabo - Opinião / O Estado de S. Paulo

Confrontado pela realidade trágica da pandemia, Bolsonaro tenta explorar as mortes como ativos eleitorais, colocando-as na conta de seus adversários

Nas inolvidáveis palavras de Dilma Rousseff, então presidente da República, “podemos fazer o diabo quando é hora de eleição”. A máquina lulopetista de destruição de reputações era mesmo diabólica. Com razão, os eleitores demonstraram o desejo de dar um basta em tanta desfaçatez e passaram a castigar o PT nas urnas. O recado foi claro: em política, mesmo que alguns considerem válido “fazer o diabo”, não se pode fazer coisas que nem o diabo faria.

O presidente Jair Bolsonaro, contudo, parece disposto a cruzar todos os elásticos limites da pugna política. Em recente manifestação pública, leu uma carta de um suposto suicida, cuja morte o presidente atribuiu às medidas de restrição adotadas por governadores para conter a pandemia de covid-19.

A exploração de um alegado suicídio para fins políticos – atacar os governadores, a quem o presidente culpa pela situação econômica crítica no País – não tem paralelo na história nacional. Nenhum presidente da República foi tão longe nem tão baixo. Quem tenta capitalizar eleitoralmente a morte de um cidadão angustiado demonstra duas coisas: destempero e desespero.

O destempero se traduziu na forma de inúmeros palavrões e insinuações de conotação sexual – as preferidas do presidente – contra seus adversários. Nada disso é novidade, mas não custa lembrar que, sempre que faz isso, Bolsonaro viola o decoro inerente ao cargo que ocupa, com a agravante de que o faz nas dependências da residência oficial, usando equipamentos e pessoal pagos com dinheiro público – o que configura crime de responsabilidade, um dos tantos que Bolsonaro comete quase todos os dias.

Se a deseducação do presidente Bolsonaro não é novidade, o desespero é. Antes seguro de sua condição de franco favorito à reeleição, pela qual trabalha desde o momento em que vestiu a faixa, Bolsonaro dá sinais agora de que se sente ameaçado.

A provável entrada de Lula da Silva na disputa de 2022 agravou sua insegurança. Certamente informado a respeito de pesquisas que mostram sua reeleição cada vez mais incerta, sobretudo em razão da escalada da crise provocada pela pandemia, Bolsonaro tratou de intensificar sua busca por bodes expiatórios para fugir de uma responsabilidade que é primordialmente sua, na condição de presidente da República.

Em suas redes sociais, Bolsonaro disse que “nós aqui buscamos salvar empregos”, enquanto governadores como o de São Paulo, João Doria, “que não tem coração”, demonstram “uma tremenda ambição”, estão apenas “lutando pelo poder” e só querem “atingir a figura do presidente da República” com medidas de restrição social e econômica para conter a pandemia.

Bolsonaro levantou suspeitas sobre o número de mortos por covid-19, insinuando que está sendo inflado para prejudicá-lo, e igualou as medidas adotadas pelos governadores à decretação de estado de sítio. Nesse momento, entrou em seu terreno favorito: a possibilidade de se tornar ditador.

Citando a hipótese de convulsão social como consequência das medidas restritivas, com “invasão aos supermercados, fogo em ônibus, greves, piquetes e paralisações”, Bolsonaro disse que cabe a ele, como presidente, “garantir a nossa liberdade”. E completou: “Eu sou o garantidor da democracia”.

Julgando-se detentor de tamanho poder, Bolsonaro disse que lhe seria “fácil impor uma ditadura no Brasil”, bastando, para isso, conforme suas palavras, “levantar a caneta e falar ‘shazam’”. E ameaçou: “Eu faço o que o povo quiser. Eu sou o chefe supremo das Forças Armadas. As Forças Armadas acompanham o que está acontecendo”, declarou Bolsonaro, para em seguida recordar com carinho da época da ditadura militar.

É bom levar a sério mais essa ameaça golpista, em se tratando de alguém com tão poucos freios morais. Confrontado pela realidade trágica da pandemia, Bolsonaro tenta explorar as mortes como ativos eleitorais, colocando-as na conta de seus adversários, e violenta a inteligência alheia ao dizer que sempre defendeu a vacina e que nunca considerou a covid-19 uma “gripezinha” – mentiras que podem ser facilmente refutadas em inúmeros vídeos do próprio presidente na internet.

Quem é capaz disso é capaz de tudo.

O desgoverno chega às comissões - Opinião / O Estado de S. Paulo

Fiel à sua estratégia do confronto, o governo, com apoio do Centrão e articulações do presidente da Câmara dos deputados, Arthur Lira (PP-AL), está colonizando as mais importantes comissões parlamentares da Casa com algumas das figuras não só mais exóticas da militância bolsonarista, mas notórias por incidentes ruidosos justamente em pautas naturais a essas comissões. É o caso de Carla Zambelli (PSL-SP), na presidência da Comissão do Meio Ambiente, e, sobretudo, Bia Kicis (PSL-DF), na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), a mais importante da Câmara.

Nem as comissões têm mero caráter cerimonial nem seus presidentes têm mera função honorária. Ao contrário. As comissões são fundamentais para que o Parlamento bem cumpra suas funções legislativas e fiscalizadoras.

Seu papel central é otimizar e garantir a qualidade técnica do processo legislativo. É nas comissões que os projetos de lei são lapidados, por meio de debates subsidiados por especialistas, antes de serem submetidos ao plenário. A Constituição atribui ainda às comissões a realização de audiências públicas com entidades da sociedade civil, autoridades e cidadãos; a convocação de ministros de Estado para prestar esclarecimentos sobre temas de interesse público; o acolhimento de petições e representações contra atos ou omissões das autoridades e entidades públicas; e a apreciação de programas, obras e planos do poder público.

A Câmara conta com 25 comissões permanentes. Entre aquelas compradas pelo governo no mercadão de cargos e emendas, estão a de Agricultura e a de Finanças e Tributação. Outra é a do Meio Ambiente, onde tramitam temas como a alteração de categorias de áreas protegidas; modificações no Código Florestal; regularização fundiária; licenciamento ambiental; ou a nova lei dos agrotóxicos – pautas cruciais não só para a preservação ambiental, mas para a agenda do agronegócio e as relações internacionais.

Zambelli, em sua primeira legislatura, já declarou na ONU que as responsáveis pela devastação na Amazônia são as ONGs e que “nunca a Amazônia queimou tão pouco” nos últimos 20 anos. “A pressão será sentida no sentido de que as boiadas de Ricardo Salles sejam concretizadas também na arena legislativa”, alertou a ex-presidente do Ibama Suely Araújo.

Por sua vez, a CCJ, responsável por avaliar a legalidade e a constitucionalidade da matéria legislativa será comandada por outra novata, Bia Kicis. Como Zambelli, Kicis é investigada pelo STF no inquérito das Fake News e liderou manifestações que defendiam a intervenção na Suprema Corte e a volta do AI-5. Kicis é ainda autora de um inacreditável projeto de lei que desobriga o uso de máscaras durante a pandemia.

O governo Bolsonaro é notório pelo recorde de projetos ineptos, rotineiramente questionados no STF por sua inconstitucionalidade. Na CCJ – a “mãe” de todas as comissões –, além de passarem praticamente todas as propostas que tramitam na Câmara, são examinados temas especialmente caros ao que Bolsonaro chama de “agenda”, como a flexibilização do desarmamento, a mineração em terras indígenas ou o home schooling.

Sem disfarçar o viés autoritário do governo, Kicis promete incluir na lista de crimes de responsabilidade uma genérica “usurpação de competência do Congresso por parte dos ministros do STF” e lidera um movimento para reduzir o chamado “kit obstrução”, um dos principais instrumentos usados legitimamente no exercício da oposição. A deputada também advoga a redução da idade de aposentadoria compulsória dos ministros do STF de 75 para 70 anos, uma evidente manobra oportunista para garantir mais indicações ao presidente Bolsonaro.

Que os governos de turno manobrem para indicar seus aliados às comissões parlamentares, é do jogo democrático. Mas, para que as comissões exerçam suas complexas funções, é fundamental que sejam presididas por parlamentares com experiência na técnica legislativa e capacidade de articulação política. Mas as indicações do Planalto vão na direção flagrantemente oposta. Será isso a “Nova Política”?

É tempo de CPI – Opinião / O Estado de S. Paulo

Uma eventual CPI em nada prejudicaria o bom andamento das ações do Legislativo

O que falta para o presidente do Congresso, o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG), determinar a imediata instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar responsabilidades pela construção da tragédia da pandemia de covid-19 no Brasil? Objetivamente, apenas a sua compreensão do papel do Poder Legislativo nesta quadra da história nacional. 

Já passa da hora de os parlamentares exercerem em toda a sua extensão uma de suas mais importantes prerrogativas constitucionais – a de fiscalizar os atos do Poder Executivo, principalmente quando estão diante de casos tão graves como o descalabro na gestão da pandemia no País.

Nas mãos do senador Rodrigo Pacheco há um pedido de instalação da “CPI da Pandemia” assinado por 31 senadores de 11 partidos políticos. Do ponto de vista regimental, os requisitos estão presentes. Há, aos borbotões, razões fáticas para ensejar a instalação da comissão, bem como autoridades a serem devidamente chamadas às falas.

É inadmissível que os dias simplesmente passem um após o outro como se o desastre sanitário fosse mais uma crise qualquer. Aos cidadãos, aflitos, tem de ser dada uma satisfação sobre este horror sem precedentes que se abateu sobre a Nação, em grande medida decorrente do descaso, da incompetência e da indignidade das ditas autoridades, a começar pelo presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello.

As lideranças do Congresso habituaram-se a dizer que “não é hora de apontar os culpados, é hora de resolver os problemas”. A esquiva é uma posição bastante confortável. Uma eventual CPI em nada prejudicaria o bom andamento das ações do Poder Legislativo para mitigar os profundos efeitos negativos da pandemia no País. Ao contrário. O esforço de investigação, por si só, já seria uma grande contribuição do Congresso para encontrar soluções viáveis para o desastre e para amainar as aflições dos brasileiros.

Há responsáveis pela claudicante vacinação no País. Enquanto diversos países já começam a experimentar os efeitos benfazejos da imunização de seus cidadãos, o Brasil vive o pior momento da pandemia. Há quem diga que caminhamos a passos largos para chegar ao Dia das Mães pranteando a morte de meio milhão de pessoas.

Há quem seja responsável pela interrupção da fabricação de vacinas porque faltaram os insumos para produção dos imunizantes. E quando havia vacinas, ainda que em poucas doses, faltaram seringas para aplicá-las. Na Fiocruz, a linha de produção foi interrompida porque enguiçou uma banal máquina de lacrar vidros de dose.

Há quem seja responsável por estimular o uso de medicamentos sem qualquer ação comprovada contra o coronavírus, como a hidroxicloroquina e a ivermectina. Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) País afora estão lotadas de pacientes que confiaram na eficácia dessas substâncias. Confiaram na palavra de ninguém menos que o presidente da República.

Há quem seja responsável pela transferência descuidada de pacientes portadores de uma nova cepa do vírus, a P.1, detectada em Manaus (AM), espalhando-a por todo o País. Já há comprovação científica de que esta variante não só é mais contagiosa, como ainda aumenta a carga viral no corpo dos infectados.

Há quem seja responsável pela morte por asfixia de mais de 50 pacientes de covid-19 na capital amazonense, após faltar cilindros de oxigênio nos hospitais.

Há quem seja responsável por incitar a desobediência às medidas de prevenção adotadas por governadores e prefeitos ciosos de sua responsabilidade. Há quem seja responsável por estimular o desrespeito às regras mais comezinhas de proteção individual, que, ao fim e ao cabo, protegem toda a coletividade, como o correto uso de máscaras.

Não é tempo para tibieza. É dever do Congresso apurar por que o Brasil é o pior país do mundo no combate à pandemia de covid-19. À Nação é dado conhecer quem empurrou o Brasil para o fundo deste abismo.

A política e as crises – Opinião / Folha de S. Paulo

Reentrada de Lula evoca trunfos e fracassos do PT e organiza, mas não define, o quadro de 2022

Acontecimentos ciclópicos, como a emergência sanitária que há mais de um ano se abate sobre todo o planeta em sincronia, deixam inevitavelmente marcas na política.

Basta notar o impacto da pandemia de coronavírus em duas das principais reviravoltas dos últimos cinco anos: a vitória do brexit no Reino Unido e o triunfo de Donald Trump nos EUA, ambas em 2016.

No primeiro caso, a convulsão neopopulista transformou-se, dobrada pela premência da epidemia, num governo conservador tradicional, sob a versão atenuada de Boris Johnson. No segundo, o negacionismo irresponsável ajudou a derrotar o incumbente da Casa Branca, fato pouco frequente na história eleitoral norte-americana.

O Brasil não ficaria de fora dessa grande onda. Consuma-se a desmoralização, em meio à trágica aceleração de internações e mortes, de um presidente da República estrambótico e irresponsável.

Em paralelo, o acerto de contas do establishment político e jurídico com a Lava Jato --em parte impulsionado pelos abusos cometidos por procuradores e juízes, em parte embalado pelo desejo de escapar das garras da lei-- devolveu o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao jogo eleitoral de 2022.

De imediato, a peripécia parece que ajudou a precipitar na gestão de Jair Bolsonaro uma comichão rumo às vacinas e até ao uso de máscaras em atos públicos. Reação muito tardia, e por ora ainda deveras postiça e hipócrita para ser levada a sério, infelizmente.

Personalidades que traçavam rota para a candidatura presidencial agora refazem seus cálculos. É o caso do governador João Doria (PSDB), do ex-ministro Ciro Gomes (PDT), do ativista Guilherme Boulos (PSOL) e do apresentador de TV Luciano Huck, pleiteante a aventureiro da rodada.

O quadro se reorganiza com a reabilitação do desafiante que encarna como ninguém os 13 anos do PT no governo, com suas notáveis conquistas, concentradas na área social, e trepidantes fracassos na economia dos anos finais e na convivência desabrida com a corrupção.

O quadro se reorganiza, mas não se define. Há variáveis poderosas em atuação --a pandemia, o desemprego, a fragilização das contas públicas, a escalada no preço dos alimentos, a valorização das abordagens técnicas dos problemas coletivos-- capazes de colocar tudo de pernas para o ar até o distante outubro do ano que vem.

Seria uma lástima se a reentrada de Lula no certame eleitoral reavivasse a polarização estéril com o bolsonarismo, o que parece animar militantes dos dois lados. O Brasil já conhece os estragos que o dogmatismo causa e não merece atravessar mais quatro anos de destruição do futuro a partir de 2023.

Maconha mexicana – Opinião / Folha de S. Paulo

Liberação do uso da erva no país latino-americano tende a ser um divisor de águas no debate

O debate em torno da descriminalização das drogas conheceu um novo e importante avanço com a aprovação nesta semana do uso recreativo da maconha pela Câmara dos Deputados do México.

A iniciativa ocorre dois anos após a Suprema Corte daquele país decidir pela inconstitucionalidade da proibição do consumo da erva, e mais de três anos depois da liberação da cânabis medicinal.

Agora, o texto segue para o Senado, antes de ser enviado à sanção do presidente Andrés López Obrador. A aprovação é dada como certa, visto que o Parlamento é controlado pelo Movimento Regeneração Nacional, favorável à norma.

A medida permitirá aos cidadãos consumir e portar a substância, bem como, mediante uma licença, cultivar até oito pés de cânabis em casa, além de facultar aos produtores suas safras da erva.

Se promulgada, a lei colocará o México ao lado de Canadá e Uruguai numa lista pequena, mas crescente, de países que legalizaram a maconha no continente americano --nos EUA, ela já é permitida para fins recreacionais em 15 estados, e o partido democrata no Senado, que exerce controle sobre a Casa, prometeu eliminar a proibição federal à erva neste ano.

Como defende esta Folha, a mera repressão, ou guerra contra as drogas, revelou-se tão cara quanto ineficaz, tendo chegado o tempo de tratar da questão pelo prisma da saúde pública.

O paradigma proibicionista, aliás, mostra um de seus resultados mais desastrosos justamente no México, onde a violência associada ao narcotráfico deixou mais de 150 mil mortos nos últimos 15 anos.

Especialistas advertem, contudo, que o impacto da nova lei nesse aspecto tende a ser diminuto, já que a crescente legalização da erva nos EUA fez com os cartéis mexicanos se concentrassem em substâncias sintéticas, mais rentáveis.

Por outro lado, o país de 127 milhões de habitantes passará a ter o maior mercado de cânabis do mundo --sem considerar nesse ranking o mercado americano, muito mais rico e de população total maior, mas no qual as normas variam de estado para estado.

Assim, a experiência mexicana, dados o tamanho e as características do país, tende a se tornar um divisor de águas global na questão da legalização da maconha e outras substâncias. Convém ao Brasil, onde esse debate não dá mostras de que amadurecerá tão cedo, observar seus resultados com atenção.

Os riscos da nova era de auxílios e estímulos fiscais – Opinião / O Globo

A aprovação, nos Estados Unidos, do pacote de estímulo fiscal de US$ 1,9 trilhão do governo Joe Biden amplia para US$ 2,8 trilhões o total destinado desde dezembro ao alívio das consequências econômicas da pandemia no país. A isso se somam US$ 2,5 trilhões já gastos durante o governo Donald Trump. Para dar uma perspectiva, o valor do pacote eleva o estímulo fiscal para mais de 27% do PIB americano. Sem falar no estímulo monetário concedido pelo Fed, por meio de corte nos juros e outras medidas. Trata-se, sem exagero, do maior programa de estímulo econômico desde a Segunda Guerra.

No mundo, a onda de pacotes emergenciais de auxílio somava até o início do ano US$ 13,8 trilhões, ou 13,5% do PIB global, segundo dados do Fundo Monetário Internacional (FMI). Houve mais de 1.600 iniciativas em programas de proteção social, de acordo com a Organização Mundial do Trabalho. Os dados compilados pelo economista turco Ceyhun Elgin para 167 países mostram que, na média, os estímulos fiscais chegavam perto de 7% do PIB até fevereiro (no Brasil, eram de 12%).

A emergência pandêmica transformou o planeta no laboratório de uma nova era de programas de assistência social. Há para todos os gostos. A maior parte envolve o envio de dinheiro diretamente a cidadãos, a exemplo do auxílio emergencial brasileiro ou dos cheques de US$ 1.400 do novo pacote de Biden. É verdade que parte do dinheiro contribui para aquecer a demanda, estimular o consumo e o reaquecimento da economia. Mas não tudo. Do estímulo concedido em 2020, US$ 1,6 trilhão foram parar não no consumo, mas na poupança.

Duas dúvidas cercam a onda do auxílio no mundo. A primeira: até que ponto a emergência é um laboratório adequado para criar uma nova rede de proteção social? É sensato que haja modernização nos sistemas atuais, baseados em ideias do século XIX. Programas de Previdência ficaram engessados e, mesmo depois de reformas, acabam destinando recursos a quem não precisa, deixando legiões de desassistidos na miséria. O pacote de Biden vem sendo encarado como embrião de um programa permanente de combate à pobreza. Mas seu efeito ainda é uma incógnita.

Programas de renda mínima acoplados a recursos digitais modernos e cadastros abrangentes — uma inspiração óbvia é nosso Bolsa Família — podem emergir como uma resposta mais ágil e eficaz nesta era em que o desemprego tecnológico parece ter vindo para ficar. A pandemia poderá acelerar a implementação deles, mas é preciso tomar cuidado para não transformar a proteção em acomodação, e o Estado, em refúgio para a indolência contumaz, em vez do apoio eventual.

A segunda dúvida é ainda mais pertinente: até que ponto o resto da economia será capaz de sustentar tais programas? A questão desperta preocupação não só nos países cuja situação fiscal é dramática, como o Brasil. Nos Estados Unidos, mesmo economistas associados à esquerda têm manifestado preocupação com o risco evidente de despejar tanto dinheiro na economia. A expectativa de alta na inflação dos países ricos já é perceptível nas cotações de papéis de médio prazo. Se os bancos centrais se virem obrigados a elevar os juros para contê-la, todo o esforço fiscal para reaquecer a economia poderá ir por água abaixo.

Só o ministro Pazuello não consegue enxergar o colapso na rede de saúde – Opinião / O Globo

O Boletim do Observatório Covid-19, da Fiocruz, com dados da última segunda-feira, revela a situação dramática do sistema de saúde no país. Em 25 das 27 capitais, as UTIs estão com pelo menos 80% de ocupação. Em mais da metade, o percentual é superior a 90%. Só Belém (75%) e Maceió (73%) estavam abaixo do alerta crítico. Em Campo Grande e Porto Alegre, a taxa ultrapassa 100%, com macas nos corredores e cenas dantescas. A situação, dizem os pesquisadores, “aponta para a sobrecarga e mesmo o colapso de sistemas de saúde”.

Apesar das evidências, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, disse na quarta-feira, quando o país bateu recorde no número de mortes em 24 horas (2.349), que o sistema de saúde “não colapsou, nem vai colapsar”. Ainda que não quisesse considerar o diagnóstico da Fiocruz, bastaria a Pazuello atentar para o farto noticiário sobre a catástrofe que se dissemina pelo país. Ou ainda ir a qualquer hospital público e ouvir os relatos sobre o desespero de quem não consegue internação, mesmo com sintomas graves de Covid-19 .

Um festival de horrores se desenrola na rede de saúde. O afrouxamento das normas de isolamento e a circulação de novas variantes mais transmissíveis do Sars-CoV-2 fizeram explodir as internações. No SUS, onde o número de leitos de UTI foi reduzido drasticamente no fim do ano passado, porque Pazuello não renovou os contratos, o cenário é crítico. Há gente morrendo em filas de espera ou entubada dentro de ambulâncias estacionadas na porta dos hospitais. Que outro nome o ministro Pazuello daria a isso, senão colapso?

O governador do Piauí, Wellington Dias (PT), coordenador do Fórum Nacional de Governadores, repondeu a Pazuello: “Já estamos dentro de um colapso na rede nacional hospitalar. Não vamos para ele, já estamos. Tem, nesse instante, uma fila gigante. Estou falando aí de milhares mesmo. Algo como 30 mil, 40 mil pessoas em todas as filas hospitalares por falta de UTI e, em alguns lugares também, de leito clínico”.

Pazuello também não viu os estoques de oxigênio esvanecerem no auge da segunda onda em Manaus, levando pacientes à morte por asfixia, num dos capítulos mais dantescos no roteiro de terror que a pandemia tem imposto ao Brasil. No curso das investigações sobre sua participação no episódio, Pazuello não consegue dizer nem sequer a data em que foi informado sobre a iminência de ficar sem oxigênio.

Pouco mais de um ano depois do primeiro caso de Covid-19 no Brasil, o país vive o pior momento da pandemia. Somos o epicentro do vírus no mundo. O número de mortos já beira 275 mil, e não há hoje qualquer perspectiva de mudar a situação no curto prazo. O presidente Jair Bolsonaro continua sua cruzada contra o isolamento, uma das maneiras eficazes de conter o vírus. Chega a invocar um caso de suicídio para atacar o lockdown. O Brasil não sairá desse pântano sem medidas drásticas de restrição, aumento do número de leitos de UTI e vacinas. Mas como imaginar qualquer solução se o ministro da Saúde não sabe nem o que se passa diante de seus olhos?

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