Lançado
em 1976, ano do bicentenário da independência dos Estados Unidos, o
filme-sátira “Rede de intrigas”, de Sidney Lumet, contava a história de um
âncora de TV demitido porque sua audiência despencara. Interpretado por Peter
Finch (Oscar póstumo de melhor ator), o personagem decide comunicar ao vivo sua
saída e avisa que se suicidará na semana seguinte com o programa no ar. A
audiência dá um salto, e a emissora decide voltar atrás. A partir daí, o âncora
passa a encarnar um oráculo insano que só diz verdades. Numa cena antológica,
ele convoca os espectadores a se insurgirem contra a lógica do mercado e da
dominação do capitalismo: “Quero que todo mundo levante de sua poltrona
agora, vá até a janela, abra-a, ponha a cabeça pra fora e grite a plenos pulmões:
‘Chega! Não aguento mais! Estou explodindo de raiva!’.”
O Brasil de 2021 tem um quê de “Rede de intrigas”. Temos o cidadão que não aguenta mais, que gostaria de explodir sua raiva contra o abandono a que foi condenado. Ele só não explode nas janelas e pelas ruas do país por medo de morrer de Covid-19. A diferença é que, no lugar de um maluco de ficção que no filme apontava para a realidade, temos um presidente da República insano, porém real, descontrolado e amoral, a nos enredar em falsidades.
Ao longo
do interminável ano de 2020, o país se acomodou, encolhido no que pesquisas
sobre saúde mental definem como “pensamento mágico” — apostou-se na vã
esperança de um reencontro com a vida em 2021. No fundo era um mero atalho
mental para sair da era da incerteza pandêmica, escapulir do estado de
ansiedade e do silêncio coletivo. Apostamos, muitas vezes às escondidas de nós
mesmos, que, no decorrer do ano novo, poderíamos sair da toca e procurar nos
reconhecer nas pessoas que algum dia fomos. Aniversários cancelados seriam
comemorados duas vezes, o Natal adiado reuniria famílias e amigos na Páscoa de
abril, e o resto do calendário de 2021 ficaria lotado de abraços apertados.
No dia a
dia, um pouco de pensar mágico não faz mal a ninguém. Sua utilidade se
assemelha à das superstições inofensivas. Quando o problema é imenso, e sua
solução parece fora de alcance, o recurso apenas aumenta a sensação de
desamparo. É onde o Brasil se encontra neste primeiro aniversário da primeira
morte por Covid-19, registrada em 12 de março de 2020. O choque, o horror
inicial, cedeu primeiro à inércia, depois à fadiga, mas finalmente adquire
contornos de consciência. Agora é torcer para que se transforme em cobrança. É
como se só agora estivéssemos despertando de verdade para 2021: com a cara num
muro pandêmico de 275 mil mortos, falta de vacinas e o colapso do sistema
hospitalar.
Também
governadores, prefeitos e o Congresso, ora em separado, ora em ações
emergenciais conjuntas, acordaram para o galope da devastação humana nacional.
Ainda assim, de modo atabalhoado, indesculpavelmente a reboque da mortandade
anunciada, ainda sem linha mestra clara. Basta listar algumas decisões tomadas
num mesmo dia — a quinta-feira passada — em nível estadual e municipal para
desnortear qualquer bípede. No Paraná, estado com a maior fila por leitos
hospitalares (500) do país, o governador Ratinho Jr. reabriu o comércio e
anunciou o fim do lockdown de 12 dias, apesar de constatar que o Brasil vive “a
maior guerra de saúde pública dos últimos 100 anos”. Em Curitiba, é o prefeito
Rafael Greca que alerta para a eventual necessidade futura de um lockdown.
“Cumpro meu dever de prefeito para anunciar que estamos chegando ao nosso
limite”, disse ele. Seu dever de prefeito não seria agir ANTES que o colapso
ocorra? O governador de São Paulo, João Doria, fez discurso semelhante ao
suspender normas anunciadas dias antes e decretar “fase emergencial”: “Pessoal,
infelizmente chegamos ao momento mais crítico da pandemia”. Ou seja, deixou
chegar a emergência crítica, para só então fechar cultos em igrejas e estádios
para jogos.
No Rio
de Janeiro, o prefeito Eduardo Paes desfolhava de forma errática a margarida
das vacinas : uma hora tem o imunizante, na hora seguinte não tem. Resta ao
grupo da faixa etária que se apruma para estender o braço voltar para casa sem
saber do amanhã. Paes também afrouxou medidas tomadas na semana anterior —
liberou o comércio na praia, academias de ginástica, cultos, ambulantes,
barraqueiros, entre outros —, não dando tempo para que se estude a eficácia de
medida alguma. É sabido que, para um lockdown ter algum impacto na curva de
contágio e de óbitos por Covid-19, e poder ser analisado em detalhes, ele deve
ter duração de ao menos 15 dias. A medida exige uma serenidade difícil de
encontrar nas diversas esferas do poder nacional.
O mais
esquizofrênico e deletério, sem dúvida, continua a ser o capitão do Palácio da
Alvorada, que confunde a medida sanitária do toque de recolher, adotada pelo
governador do Distrito Federal para reduzir a disseminação do vírus, com estado
de sítio, instrumento excepcional pelo qual o presidente da Republica suspende
por determinado período a atuação dos poderes Legislativo e Judiciário.
“Por vezes, morremos muito antes de sermos enterrados”, escreveu o francês Romain Gary em seu romance “Além deste limite, seu bilhete não vale mais”. O Brasil, neste ano 2 da pandemia planetária, parece decidido a não morrer tão antes do inevitável. A sociedade civil se organiza, a iniciativa privada se mexe, um reordenamento nas esferas estadual e municipal brota como opção B ao inexistente comando federal. Mas, para sobrevivermos, urge deixar Jair Bolsonaro e sua sombria parentela falando sozinhos.
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