Lula
deve continuar sendo assim por um bom tempo, talvez até a urna, sua íntima. Ocupa tanto o lugar do homem de luta como o
da pacificação. É o candidato da esquerda e é também aquele que pode saltar por
cima do centro e atrair o centrão. Perda de tempo querer colar na sua testa a
etiqueta de extremista.
O
chamado centro não tem a menor chance de ser ouvido agora. Não conseguirá, por
mais que tente, ser mais oposição a Bolsonaro do que Lula é, nem conseguirá
convencer o imenso eleitorado da direita de que o centro é opção mais segura do
que Bolsonaro para evitar a possível volta do PT. Fala e falará para as paredes
quem prega, em tese, contra a polarização, um dado do mundo real que só passará
a ser visto como algo a ser superado se e quando ficar claro que a reeleição de
Bolsonaro é o desfecho provável dela. No atual momento, é inútil. A fênix Lula
comunica aos quatro ventos precisamente o contrário, isto é, que essa polarização
é o caminho visível a olho nu para livrar o país do extremismo que o
desgoverna. Só depois de meses se poderá
medir e saber (por pesquisas e outros termômetros) se a luz no fim do túnel que
o ex-presidente promete é comunicação veraz, portanto, promissora, ou esperança
vã e perigosa, pelo risco que a reeleição de um extremista de direita
representa para a democracia. Nessa segunda hipótese sim, poderá surgir espaço
a um discurso real, não só evangelizador, contra a polarização Bolsonaro/ Lula.
A fotografia atual da situação dá razão a quem considera essa disputa entre ambos
como o que temos para o almoço. Quem recusar essa realidade, arrisca-se a ficar
com fome.
Agora, o jantar vai ter esse cardápio também? Ou em um ano e meio o cenário pode mudar? Não me arrisco a passar da fotografia à profecia. É preciso ter em conta que o imenso impacto que a volta de Lula ao protagonismo provoca em tudo ao seu redor vira de ponta cabeça a conjuntura, porque ele, sem dúvida, é um dos eixos que a estrutura e a torna mais clara e compreensível. Mas esse impacto não faz do ex-presidente e seus movimentos chaves interpretativas do que passará a ser esse “tudo ao redor”. O futuro continua a ser propriedade do imprevisto. A razão humana é teimosa e deseja fazer previsões, mas para que elas não sejam só projeções de desejos, precisam recorrer a hipóteses alternativas, que só podem ser pensadas se usarmos instrumentos de prospecção adequados. Eles existem, para esse caso?
Pesquisas
podem sempre ser instrumentalizadas para inflar bolas e criar marolas. Nem se
trata de o instituto ser ou não confiável. Mas o que não é, a meu ver, nem
informativo, nem educativo, é pesquisa de intenção de voto ser valorizada como
bússola, um ano e meio antes da eleição e no meio de uma pandemia, quando os
eleitores estão - com toda a razão, aliás - muito distantes de pensar em
eleição. É persuasivo o argumento da especialista Márcia Cavallari Nunes
(ex-Ibope) que relativiza o sentido, neste instante, de pesquisas convencionais
de intenção de voto, que expõem entrevistados a simulações de hipotéticos
cardápios eleitorais, quando se está muito longe de definir qual valerá. Assim,
o que o Ipec (novo instituto de pesquisa que ela dirige) nos oferece é a
detecção de um "potencial de voto" de personalidades “presidenciáveis”
sobre cujos nomes, apresentados em separado, sem alusão a qualquer cenário
hipotético de disputa, os entrevistados são inquiridos, cabendo quatro
alternativas de resposta: votaria com certeza, poderia votar, não tenho
informação para saber se votaria e não votaria de modo nenhum. Os resultados
não permitem supor o desfecho da eleição, caso ela ocorresse hoje, e sim saber
quem tem potencial para concorrer com êxito a uma eleição prevista para daqui a
um ano e meio.
A
pesquisa foi feita há três semanas, logo, não registra nem o impacto da
reativação do fator Lula, nem a recente
escalada assustadora de Bolsonaro na hostilidade a governadores e na negação da
tragédia brasileira na pandemia. Mas
vale debruçar a atenção sobre um gráfico dessa pesquisa, publicada pelo “Estadão”
no domingo passado (07/03), porque ele mostra, para além de oscilações de
conjuntura, o que a matéria chama de “capital político” dessas personalidades, assim
entendido: POTENCIAL DE VOTO (que soma, numa faixa azul, quantos votariam hoje
com certeza e os que poderiam votar), DESCONHECIMENTO (mostrado numa faixa
amarela) e REJEIÇÃO, mostrando, em faixa vermelha, quantos hoje não votariam
nesse nome de jeito nenhum.
Consideradas
as faixas azuis, conhece-se quem tem potencial de voto e a manchete do jornal,
corretamente, já apontava Lula à frente de Bolsonaro mesmo antes da decisão de
Fachin e ambos em vantagem face aos demais. Mas sendo a eleição brasileira em
dois turnos, é preciso ajustar a lupa e seguir em frente na análise. Somadas as
faixas, azul e amarela, de cada uma das dez personalidades e abatido, dessa
soma, o número da sua faixa vermelha, ficamos sabendo quem tinha, em fevereiro,
um capital político capaz de chegar lá e, chegando, ter êxito. Como esperado, Lula e Bolsonaro têm faixas
amarelas muito exíguas, ambos com 6%. Na comparação, Lula parecia estar bem
melhor nesse ponto também, porque a faixa vermelha de Bolsonaro é maior.
Para
uma análise menos estática, é pena que o gráfico não discrimine (não sei o porquê)
quem votaria com certeza e quem poderia votar. Para mensurar o capital político
de momento faz sentido juntar essas duas situações numa só faixa. Mas para uma
prospecção mais precisa e ousada, essa faixa azul mistura alhos e bugalhos, pois
uma das situações expressa resiliência e a outra é o elemento volátil,
suscetível a discursos, à conduta política diante de problemas relevantes e às
estratégias de campanha.
Afinal,
as coisas se movem. Depois da decisão de Fachin, do discurso amplo de Lula em São
Bernardo e da realidade brutal de agravamento da pandemia com radical
insensibilidade do presidente não se pode saber quantas pessoas da faixa
vermelha de Lula passaram agora para a amarela ou para a porção mais volátil da
azul. Ao mesmo tempo não se sabe quantos podem ter migrado da faixa vermelha de
Bolsonaro para a amarela ou a azul depois que souberam que Lula e o PT podem
mesmo voltar. Dessas coisas só se saberá nas próximas rodadas. É de esperar que
nas próximas divulguem os números em quatro faixas, dividindo a azul em duas,
pois é o movimento entre as faixas "poderia votar" e "de jeito
nenhum", o que mais interessa acompanhar, no que diz respeito ao confronto
Bolsonaro-Lula.
Mas
convém olhar também, no mesmo gráfico, o capital político das outras oito
personalidades e fazer a mesma conta. Até onde se pode ver hoje, a regra geral
é a soma das faixas azul e amarela (potencial + desconhecimento) sequer alcançar
a vermelha, ou seja, a rejeição atual desses presidenciáveis tornaria improváveis
suas vitórias em segundo turno. A única exceção é Luiz Mandetta. No seu caso,
as faixas azul e amarela somadas ultrapassam a vermelha em dez pontos. Isso é
um indicador de amplíssimo campo para uma construção do seu nome, caso essa
seja uma decisão de forças políticas e não apenas uma pretensão pessoal dele. Sua
faixa amarela era tão larga que com ele pode ocorrer tudo, inclusive nada. Compreende-se
que esteja quase invisível em pesquisas convencionais de intenção de voto. Mas
numa pesquisa de “capital político” só ele e Lula (e ele ainda mais do que
Lula) sinalizavam, em fevereiro, rejeição minoritária, isto é, boas chances de
vencer, se candidato, um segundo turno. Por isso acho inadequado enquadrar Mandetta
na mesma situação onde efetivamente estão Huck, Doria, Ciro ou Marina. Mesmo
hoje ainda longe da raia principal, o ex-ministro da Saúde é o único nome da
centro-direita, ou do centro, capaz de entrar na arena plebiscitária, onde hoje
estão apenas Bolsonaro e Lula.
O
caso de Bolsonaro merece comentário adicional. Rejeição, alta e crescente, retira-lhe
competitividade no segundo turno. Ele dependeria de um jogo de soma zero com um
adversário de rejeição equivalente, jogo em que ataques recíprocos pudessem
levar alguém a vencer pela aversão ou pelo medo que possa incutir no eleitor,
em relação ao adversário. Seja quem for esse adversário, não terá dificuldade
em ampliar tal sentimento contra Bolsonaro, pois o extremismo e a
irresponsabilidade do próprio já o faz. A questão é quantos eleitores
Bolsonaro, a essa altura da sua escalada, convencerá de que o adversário, seja
quem for, é perigo maior do que ele mesmo. Talvez ele pense que um petista (não
necessariamente Lula) seja o melhor adversário para si, mas só o tom que Lula adotar
confirmará ou desmentirá isso. Sendo ele um craque profissional, e não um
Haddad, o capitão não tem motivos para estar esperançoso.
O
assunto pesquisas pode render ainda mais reflexão se tomarmos como referência
uma modalidade alternativa que, em comparação com a do Ipec, está ainda mais
distante de pesquisas convencionais de intenção de voto. E com a vantagem de ser novíssima, posterior à
reestreia de Lula. Foi publicada ontem, no jornal El Pais, a segunda pesquisa
do Atlas Político que usa um conceito distinto do de capital político, mas
bastante convergente com ele. Avalia imagem de personalidades públicas, também
apresentadas aos eleitores isoladamente, não como pré-candidaturas submetidas a
comparação com hipotéticos concorrentes. Simpatia, antipatia ou conhecimento
insuficiente para simpatizar ou não, é uma tradução possível do significado de
imagem positiva (faixa verde), negativa (faixa vermelha) ou indefinida (faixa
cinza). Essas percepções estão ainda mais distantes de uma intenção de voto e
por isso não podem também fazer prospecções sobre resultados eleitorais. Mas
apontam quais podem ser as candidaturas competitivas, com base em saldo ou déficit
entre imagem positiva e negativa.
Um
gráfico da primeira pesquisa (janeiro de 2021), segue apenas para ilustrar e
permitir, a quem quiser, estudar a evolução, que aqui não comentarei.
Agora segue gráfico análogo, referente à pesquisa recente, feita entre os dias 9 e 11 de março. Sobre ele sim, farei alguns comentários.
Incorporando
a zona cinzenta como teto máximo de formação de saldo positivo, apenas quatro
nomes pesquisados ultrapassam os 50%, dispostos na seguinte ordem: 1. Flavio
Dino (64); 2. João Amoedo (61); 3. Luiz Mandetta (60); 4. Hamilton Mourão (57).
Fazendo a estatística conversar com a realidade,
pode-se dizer que, hoje, apenas Mandetta é candidato cogitado e que sua faixa
cinzenta (confirmando o já revelado na pesquisa do Ipec) equivale às de Amoedo
e Dino. Mas o que distingue Mandetta nesse trio é ter uma faixa verde que o
credencia, desde já, a ser candidato competitivo no mundo real.
Mas
na frieza dos números isso vale também para o general Mourão. Seu nome deveria
ser levado a sério? A princípio não, porque sua candidatura é excludente com a
de Bolsonaro na vida real. Inclusive porque é razoável pensar que os 32% de sua
faixa verde podem ser compostos por um universo de pessoas muito parecido com
os 36% da faixa verde do presidente. A hipótese de uma candidatura Mourão só
pode ser cogitada em cenário de renúncia ou impeachment, hoje fora da ordem do
dia. Mas o afastamento prematuro de um presidente como Bolsonaro nunca deixará
de estar em pauta e por isso o dado da pesquisa do Atlas Político é relevante
para desfazer ilusões de quem imagina que, em caso de afastamento do capitão, o
general seria um tampão resignado, como foi Temer. Sua imagem atual
aconselharia candidatar-se com boas chances de não ser cancelado por rejeição,
a depender do modo pelo qual Bolsonaro sairia de cena. Se Mourão conseguir livrá-lo
de um castigo justo, poderia herdar seus eleitores. O que não se pode deixar de comentar é que,
no campo governista, não há por que tomar como axioma que Bolsonaro é a melhor
opção eleitoral. Ao contrário, a pesquisa sugere Mourão como opção menos
arriscada. Mas como combinar com as milícias?
Se
lembramos como estavam em pesquisas, Collor em março de 1988, FHC em março de
1993 e o próprio Bolsonaro em março de 2017 iremos devagar com o andor da
profecia. Assim como Collor e Bolsonaro, um ano e meio antes de suas eleições,
Mandetta está apenas semivisível em pesquisas de intenção de voto, mas tem inegável
campo para crescer. Falta saber se além desse potencial, ele terá a seu favor -
como teve FHC, em 1994 - uma convergência em sua direção para construir, não um
centro político, ideologicamente falando, mas um centro de gravidade
sintonizado com um eleitorado que tem se revelado fortemente inclinado à centro-direita,
mais do que em 1994.
Essa
convergência pode partir do centro ou da direita mesmo. O DEM tem uma opção,
que talvez Rodrigo Maia não tenha levado na justa conta quando rompeu com seu
partido de modo desastrado. Mandetta pode ser alternativa real de uma centro-direita
que ainda não se decidiu quanto a Bolsonaro, mas que aos poucos vê que apostar
nele não é rota segura para renovação de mandatos parlamentares, porque
Bolsonaro é puro plebiscito e não transfere voto para aliado, como ficou
claríssimo nas eleições de 2020. É equívoco supor que Bolsonaro é o polo ativo
de sua articulação com a Câmara. É o contrário. Ele foi procurado pelo centrão
que queria se livrar de Maia. Conseguido o objetivo, Lira e suas turmas podem
agora estudar alternativas. Para segurá-los todos, ou em boa parte, Bolsonaro
terá de mostrar serviço, baixando sua rejeição. Além disso tem que provar que
pode transferir votos. Sem essas duas condições o aparente maciço chamado
centrão vai, em compotas, lhe virar as costas. O que experiências pretéritas
indicam como mais provável é que, após o almoço no Planalto, ao menos parte do
centrão (que nunca foi ator coeso) vá jantar em outro lugar. Lula é uma óbvia opção,
mas é nesse ponto que o DEM pode incluir Mandetta no cardápio, caso ele já
tenha se ambientado bem na arena plebiscitária.
Dentro
dessas balizas, o dito centro liberal-democrático precisa fazer política e não
só análises. Politicamente precisa decidir se quer se unir a tempo de tentar
criar, a partir de si, uma convergência em torno de um cavalo a ser selado, que
ele ignora há um ano, quando reagiu com fleugma imprudente à exoneração de Mandetta
do Ministério da Saúde, em plena pandemia. Suas análises devem observar, nos
próximos meses (para tentar evitar), se Bolsonaro, além de conservar parte do
centrão, capturará de novo os potenciais eleitores de Sergio Moro; e se Lula
vai conseguir corresponder aos acenos de outra parte do centrão e da parte
Calheira do MDB. Se nacos eleitorais da direita e da centro-direita forem assim
comidos pelos dois polos, ainda durante o almoço, talvez Mandetta nem faça
parte do cardápio do jantar e o DEM, ou fique com o governo, ou pendurado no
pincel, junto com o PSDB, Cidadania e PV, para apenas marcarem posição,
enquanto toda a esquerda, se tiver juízo, marchará com Lula. Se os partidos de
esquerda hesitarem, seus eleitorados os deixarão falando sozinhos. Fachin, com
uma canetada, adiou toda a pauta controversa que povoava a agenda interna da
esquerda brasileira até o último dia 8 de março. Ciro Gomes tende a ser exceção
confirmatória da regra que privilegia os fatos se, em vez de reciclar o
discurso para retornar ao centro, insistir em querer jogar água no chopp do PT.
* Cientista político e professor da UFBA
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