Aung San
Suu Kyi: ‘O temor de perder o poder corrompe aqueles que o exercem’
“Creio que nenhum homem tem plena consciência
das engenhosas artimanhas a que recorre para escapar à sombra terrível do
conhecimento de sua própria pessoa” (Joseph
Conrad). Seria possível imaginar o mesmo de um país? Dizer, como o
personagem de Shakespeare (em Macbeth):
“Ai de ti, pobre país, quase com medo de conhecer a si próprio”. O Brasil sob o
bolsonarismo parece cada vez mais enredado no autoengano e na autocomplacência,
empenhado em perder-se em engenhosas artimanhas para escapar ao conhecimento de
si próprio.
Mas a terrível sombra está a ficar mais visível com o agravamento da pandemia, e com suas consequências. Paradoxalmente, é o que poderá talvez permitir que escapemos, nos próximos 18 meses, do autoengano coletivo, que seria trágico. Terrível como possa ser, o Brasil, a duras penas, pode estar se conhecendo melhor. Afinal, Bolsonaro e sua grei são parte integrante de nossa realidade. Cumprirá a cada um de nós procurar construir coalizões – de pessoas, de partidos – aptas a apresentar-se à sociedade em geral (não apenas a nichos identitários, corporações estabelecidas e interesses consolidados) como alternativas de poder viáveis e construtivas.
Não será
fácil. No presidencialismo à brasileira o
poder incumbente dispõe de enormes vantagens, particularmente quando a busca da
reeleição constitui sua inequívoca prioridade. O poder que detém o presidente
de nomear, demitir, vetar e cooptar não deve ser subestimado. Nem sua presença
nas redes sociais ou o expressivo contingente do eleitorado que lhe confere
o status de mito.
Em algum
momento será preciso convergir para nomes, a política assim o exige. Mas tão
importante quanto o quem é com quem mais (pessoas,
partidos, grupos sociais), com
que tipo de proposta sobre os principais desafios do
País, com que tipo de interpretação sobre
onde estamos, como até aqui chegamos e para onde se está propondo que
caminhemos.
Carlos
Pereira, em artigo recente (Folha 8/2),
comenta a diferença entre montar uma
coalizão para uma disputa eleitoral e gerenciar
uma coalizão para efetivamente governar, à luz das dificuldades de coordenação,
custos de governabilidade e perspectivas de sucesso legislativo. Após um ano e
meio de recusa, Bolsonaro foi obrigado a aceitar uma coalizão e a empenhar-se
pessoalmente na eleição dos novos presidentes da Câmara e do Senado. Mas, como
notou o autor, “estando o presidente disposto a jogar o jogo do
presidencialismo multipartidário, precisa aprender a gerir a sua coalizão de
forma profissional e não amadora”. Sua forma de gerir a coalizão alcançada tem
se mostrado volátil e estouvada, mas claramente concentrada em sua reeleição.
Que depende da consolidação e ampliação de seu eleitorado fiel, do cultivo das
corporações que tem como suas e da transferência de responsabilidades para
governadores, prefeitos e para a mídia profissional.
A
extraordinária disfuncionalidade do Executivo federal no combate à covid é o
exemplo mais flagrante e doloroso dessa inépcia, mas não o único. Afinal, é de
nosso presidente a afirmação: “O País está quebrado, e eu não consigo fazer
nada”. Eis a continuação da mensagem, implicitamente sugerida: porque não me
deixam fazer o que eu gostaria, ou o que precisaria ser feito, a culpa não é
minha. Em outra fala, saiu-se com variante muito mais grave: “Alguns acham que
posso fazer tudo. Se tudo tivesse que depender de mim, não seria este o regime
que nós estaríamos vivendo”. Nada surpreendente para quem em janeiro afirmara
que “quem decide se um povo vive sob uma democracia ou uma ditadura são as
Forças Armadas”. As duas frases não deveriam surpreender a quem conheça sua
trajetória, no Exército e no Congresso, ou a quem se dê ao trabalho de
assistir, na íntegra, ao vídeo da famosa reunião ministerial de 22 de abril de
2020, verdadeira ressonância magnética de um organismo disfuncional.
A
História ensina que uma sociedade enjaulada em acerbas polarizações é
particularmente vulnerável a populismos fraudulentos. Existem sempre instigadores
que despertam e incendeiam a ambição de populistas e tiranos em potencial. Como
existem sempre os facilitadores que, ainda que percebam o perigo representado
por aquela ambição, imaginam-se capazes de controlar os arroubos autoritários
do populista (ou do tirano) enquanto se beneficiam de seu estilo de assalto a
instituições estabelecidas. Como aponta com pertinência Aung San Suu Kyi, “não
é o poder que corrompe, mas o medo. O temor de perder o poder corrompe aqueles
que o exercem. E o medo do açoite do poder corrompe aqueles que estão sujeitos
a ele”. Persio Arida retomou o tema em excelente live recente, a propósito do
Brasil de hoje.
Nos próximos 18 meses o Brasil deverá decidir se afinal deseja assumir-se como uma democracia vibrante, reconhecida como tal pelo resto do mundo; ou se persistirá na trajetória de incerteza crescente sobre nosso futuro econômico, social e político. E a correr sério risco, à luz de eventos dos últimos dias, de reeditar o tipo de polarização que marcou tanto nossa experiência em 2018 como os últimos trágicos 12 meses de pandemia.
*Economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC
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