No mês da consciência negra, é fundamental para o presente e o futuro da sociedade brasileira o debate sobre a história da escravidão e a realidade da população negra, hoje no Brasil.
Saber como se desenvolveu e os fundamentos da
escravidão no Brasil, o processo de libertação da escravatura até à atualidade,
são desafios para avançarmos e superarmos a difícil realidade que vive a
população negra ainda hoje no Brasil.
As lutas de libertação e a abolição da escravatura
O Abolicionismo foi um movimento político
iluminista e consolidou-se como uma das formas mais representativas dos
movimentos políticos, no século XIX, que tinha como objetivo a abolição da
escravatura e do comércio de escravos africanos. No Brasil, eram pessoas ou
organizações que defendiam o fim da escravidão.
As leis abolicionistas, decretadas entre 1850
e 1888, refletiam os conflitos e as contradições do período monárquico frente à
pressão dos abolicionistas e das lutas dos negros organizados que resistiram e se organizavam nos quilombos, desde o
início da escravidão no Brasil, no final do século XVI.
A abolição da escravatura no Brasil, em 13 de
maio de 1988, assinada pela princesa Isabel, foi fruto das mudanças que já
vinham acontecendo na sociedade brasileira, pressionada pelas transformações
políticas, econômicas e sociais que aconteciam na Europa, na própria América, a
exemplo do movimento de libertação dos escravos no Haiti, que foi fundamental
na proclamação da República naquele pais. A libertação dos escravos aqui atendia
aos interesses da Inglaterra em plena industrialização, que necessitava de
novos mercados fora da Europa para consolidar a sua hegemonia no cenário
internacional.
A escravidão negra na América já tinha
precedentes: com a chegada de Cristovão Colombo ao nosso continente, em 1492,
iniciou-se o massacre e escravização de todas as populações indígenas,
inclusive no Brasil.
Até à chegada da corte portuguesa ao território
brasileiro, no inicio do século XIX, os colonizadores portugueses mataram, a
cada 100 anos, cerca de 1 milhão de indígenas através de guerras de extermínio,
assim como de doenças e enfermidades trazidas com a colonização europeia. Dos 4
milhões de índios, na chegada de Pedro Álvares Cabral, a população indígena foi
reduzida a menos de 1 milhão de pessoas, no início do século XIX, quando a
família real aqui chegou.
Assim, a escravidão indígena já existia no
Brasil, antes da escravidão negra, inclusive os prisioneiros de guerra
trabalhavam como escravos para as tribos vencedoras. No entanto, não existia
como na África, como mercado organizado, desde o século XV, como mercadoria de
valor de uso e de troca, gerando riquezas fabulosas durante séculos.
A existência anterior da escravidão na
história da humanidade, inclusive a escravidão de brancos e de indígenas, não
traz relatos de sofrimentos e de perdas tão significativas e duradouras como a
dos povos africanos, realidade que nos agride como humanidade até à atualidade.
A escravidão africana, até meados do século XIX, era um dos fundamentos da vida econômica na América. Fazia parte da estrutura das relações políticas, econômicas e sociais, base de acumulação de riquezas dos países da Europa, inclusive da Inglaterra, berço da revolução industrial. A mão de obra escrava foi a base da economia colonial na América como as máquinas da primeira revolução industrial foram primordiais na acumulação capitalista, a partir do século XVIII, na Europa.
A cultura do racismo, como conhecemos, nasce
como uma maneira de exclusão dos povos africanos da vida e das conquistas da
sociedade humana, desde o século XV, deixando marcas profundas até à atualidade.
A escravidão passa a ser diretamente relacionada aos povos africanos, como uma
maldição, a partir de uma visão cultural e religiosa eurocêntrica nas colônias
da América, na Europa e no próprio continente africano. O Brasil foi o país de
maior concentração de escravos africanos no mundo. Chegou a uma população de 5
milhões deles, ao longo dos mais de 300 anos nos quais perdurou a escravidão
negra entre nós.
A abolição da escravatura em solo brasileiro
atendia aos interesses das oligarquias nacionais, que já não podiam manter o
custo da mão de obra escrava, e a realidade internacional pelo que o Brasil já
representava em função do território, riquezas naturais, particularmente
minerais, potencialidades agrícola e pecuária, no contexto da economia mundial.
As leis abolicionistas entre nós promoveram, de
maneira gradual, a emancipação dos escravos. A primeira foi a Lei Eusébio de
Queiroz, em 1850. Posteriormente, a Lei do Ventre Livre, em 1871, e a Lei dos
Sexagenários, em 1885. Finalmente, a lei assinada pela Princesa Isabel em 13 de
maio de 1888 que abolia a escravidão no Brasil. São consideradas as principais
lideranças negras abolicionistas: André Rebouças, José do Patrocínio e Luiz
Gama. Ainda devem ser destacadas as lideranças femininas como Maria Tomásia,
Adelina e Maria Firmina dos Reis, entre outras lideranças abolicionistas
brasileiras.
Em uma outra perspectiva, aconteceu a luta dos
quilombolas. Os quilombos eram formados como espaços de resistência, de
libertação e de construção de novas relações políticas, econômicas e sociais. O
de Palmares é o mais conhecido e aclamado na liderança de Zumbi, cuja data de
sua morte, 20 de novembro, passou a ser a data nacional de resistência e de
luta pelos direitos da população negra no Brasil, desde
2011.
Assim, a libertação dos(as) negros(as) em
território brasileiro é o resultado das lutas de resistência dos movimentos de
libertação, desde quando os africanos chegaram ao Brasil como escravos(as), nos
movimentos dos Quilombolas e dos abolicionistas como espaços de luta, de
resistência e de conquistas no processo de emancipação da população negra como
parte integrante da sociedade brasileira, com seus conflitos e contradições
históricos e atuais.
Desde então, por tudo o que o Brasil
representava e continua representando, inicialmente como Colônia, depois como
Monarquia até à proclamação da República e atualmente, a população negra vinda
da África para realizar o trabalho escravo e seus descendentes continuam, regra
geral, sem a devida representação na vida política, econômica e social no
Brasil.
Portanto, os desafios históricos de inclusão
da população negra na sociedade brasileira continuam atuais.
Hoje, quais são os compromissos dos que
governam, da sociedade e da cidadania em geral frente a essa realidade de
exclusão da população negra brasileira?
A situação atual da população negra no Brasil
é causa e/ou consequência da realidade brasileira historicamente construída ou
é um fenômeno conjuntural ampliado por causa da própria pandemia que estamos
vivendo?
O que pensam hoje o Movimento Negro e os outros
movimentos políticos, econômicos,
sociais, ambientais e multiculturais frente à atual realidade brasileira
e quais os caminhos de superação da exclusão histórica e atual da população
negra e de outras populações, a exemplo da população indígena, marginalizadas
no País? São as questões a serem consideradas no caminho de inclusão da
população negra na sociedade brasileira.
Desde a Abolição da Escravatura no Brasil, no
século XIX, quando a sociedade saiu do trabalho escravo e foi desenvolvendo as
bases do capitalismo comercial e industrial, a ciência e a técnica começaram a
ser incorporadas, cada vez mais, nos processos de produção e distribuição de
mercadorias, construindo novas relações políticas, econômicas e sociais em nossa
sociedade.
Os escravos recém-libertos não foram
incorporados a esta nova realidade política, econômica e social. Sem a terra e
a escolaridade necessárias, os(as) negros(as) libertos(as) ficaram à margem da
sociedade brasileira na sua imensa maioria, situação que continua na
atualidade, apesar das conquistas e dos avanços desde a Constituição de 1988.
Desde então, a população negra e a sociedade
brasileira estão desafiadas à construção de uma sociedade que supere os
conflitos e as contradições gerados
nessa sociedade historicamente construída, na busca de uma sociedade mais
democrática, inclusiva na sua organização política, econômica e social,
distribuindo melhor a riqueza produzida por todos os brasileiros.
A partir da base técnica e científica da
sociedade contemporânea, a humanidade poderia enfrentar e resolver qualquer
problema social e/ou econômico, inclusive os da fome, de moradia, de melhoria
da saúde e educação que atingem uma parcela considerável da população
brasileira e mundial, inclusive a situação das populações negras destacadas no
presente texto.
As modificações ocorridas na economia mundial,
nas últimas décadas, possibilitaram novas maneiras de produzir e de distribuir
mercadorias, de comércio, de turismo e de lazer, transformando radicalmente as
relações de trabalho, impactando a vida de milhões de trabalhadores(as) no
mundo e no Brasil. A internet, a robótica, a microeletrônica, as tecnologias de
informação, os novos materiais e as energias renováveis entraram
definitivamente nas nossas vidas, transformando as relações de trabalho
estabelecidas: hoje, muitas atividades laborais podem ser realizadas em casa; a
pandemia apenas acelerou este processo, modificando a maneira de ser e estar de
milhões de pessoas no planeta.
As mudanças em curso evidenciam a
interdependência entre a educação, a ciência e a tecnologia, as transformações ocorridas
e as que estão ocorrendo no mundo do trabalho com reflexos políticos,
econômicos e sociais na sociedade contemporânea. A população negra e as suas
organizações devem estar preparadas para a luta e a defesa dos seus interesses
frente a essas transformações nas sociedades brasileira e mundial.
Os brasileiros continuam desorientados e reféns
das narrativas políticas e eleitorais. A insegurança é total. Os dados em
relação à contaminação e às mortes são assustadores. As estatísticas
apresentadas diariamente nos meios de comunicação dão a dimensão da tragédia. O
governo federal, como principal responsável pela Política Nacional de Combate à
Pandemia com sua política negacionista, só faz agravar a situação contribuindo
para uma polarização que não ajuda a resolver as nossas urgências econômicas,
sociais e de vacinação.
Os(as) trabalhadores(as) de menor renda e os(as)
desempregados(as) em geral, na sua maioria negra, continuam enfrentando sérias
dificuldades, entre as quais a falta de uma renda emergencial permanente que
lhes assegure o mínimo de dignidade para atravessar a crise, agravada com a
contaminação de milhões e a morte de mais de 400 mil pessoas pela Covid-19,
tragédia que atinge sobretudo a
população de baixa renda, as mulheres na sua dupla jornada de trabalho, as
populações indígena e negra historicamente excluídas no Brasil.
A inclusão da população negra (54% da nossa
população, segundo o IBGE), deve ser realizada a partir de pautas afirmativas e
de reparação com o olhar do presente no caminho de um futuro que unifique a
sociedade brasileira, construindo uma agenda nacional para a saída da crise no
caminho da consolidação e ampliação da democracia brasileira. A população negra
e suas representações devem estar em diálogo permanente com a opinião pública e
a sociedade em geral fortalecendo suas redes sociais e de comunicação em
diálogo permanente, defendendo a melhoria das condições de vida de todos,
apostando em uma agenda nacional que retire o Brasil desta grave crise política,
econômica, social e de valores que estamos vivendo.
Portanto, a população negra e a sociedade
brasileira em geral estão desafiadas a construir uma agenda propositiva a ser
pactuada no enfrentamento dos reais problemas
nacionais agravados com a pandemia: realizar as reformas no caminho de
uma nova economia, pensando o Brasil nos próximos 5, 10, 15 e 20 anos,
considerando a sua dimensão continental, as potencialidades nacionais e regionais, seus ativos naturais e
a diversidade cultural. A base desta construção democrática é a educação, a
ciência e a tecnologia que devem ser incorporadas como estruturantes e
estratégicas, melhorando a qualidade de vida dos(as) trabalhadores(as), da
população negra e de toda a sociedade, nas próximas décadas.
*George Gurgel de Oliveira, Professor da Universidade Federal da Bahia, da Oficina da Cátedra da UNESCO-Sustentabilidade e do Conselho do Instituto Politécnico da Bahia
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