- Folha de S. Paulo
O sambista, que morreu aos 96 anos, sabia
que a tradição do passado fundamenta a arte do presente
A memória de Nelson
Sargento —que morreu na quinta-feira (27), aos 96 anos— sempre
foi prodigiosa. Ele lembrava que, moleque franzino, de tamborim na mão, calça e
tênis brancos, camisa azul de jérsei e cartolinha de feltro, desceu as ladeiras
do morro do Salgueiro para brincar o Carnaval na rua Dona Zulmira, território
nelsonrodrigueano onde corriam soltas as batalhas de confete.
Depois chegou ao morro de Mangueira para viver com a mãe ao lado do fadista (depois sambista) Alfredo Português, em cujo barraco havia animadas reuniões de pagode, com carne moqueada, cerveja casco escuro e a presença da nobreza: Cartola, Carlos Cachaça, Nelson Cavaquinho, Geraldo Pereira.
Nelson era o "gravador" da turma, evitando que algumas composições daquela época pioneira caíssem no esquecimento. Só de Cartola, "salvou" três, acrescentando-lhes uma segunda parte: "Deixa", "Ciúme Doentio" e "Vim lhe Pedir". Aprendeu ali que samba é memória. A tradição inspira e fundamenta o presente.
Um sambista de truz —como era Nelson
Sargento— tem saudade de um passado que muitas vezes nem viveu, e é por isso
que compõe. Pode ser um passado de glórias, um passado de lutas, um passado de
amores, um passado fingido no qual acredita. Da recordação imaginada, nascem
maravilhas como "Falso Amor Sincero".
Nelson era como "Funes, o
Memorioso", do conto de Borges. O ofício de pintor de paredes —viração nos
apartamentos elegantes da Zona Sul carioca, com tinta branca, espátulas e rolos
de lã— lhe abriu o caminho para a carreira de artista primitivo, quadros a óleo
que retratam paisagens de favela e figuras carnavalescas resgatadas do olvido.
Um grande frasista. Uma vez bebíamos
cerveja preta na praça 15 e, vendo o povo passar em direção à barca de Niterói,
ele me disse: "O maior inimigo do pobre é o outro pobre". Adeus,
Nelson Mattos, sargento apenas no apelido.
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