- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Estudo global desmente a tese de que
autoritarismo foi mais eficaz e joga luzes sobre o ressurgimento do poder local
no enfrentamento da pandemia
Se China, Vietnã e Hong Kong propagandearam
a eficiência do autoritarismo no combate à pandemia, Coreia do Sul, Nova
Zelândia e Noruega contrapuseram a importância da transparência e da prestação
de contas da democracia contra o vírus. A uma França que centralizou a resposta
ao vírus, se opuseram Estados Unidos e Brasil, onde o federalismo mostrou-se
resiliente no contraponto à inoperância de governos centrais de veleidades
autoritárias.
Qual desenho institucional, finalmente,
responde melhor à pandemia? Guiados por esta pergunta, um grupo de 67
pesquisadores, coordenados por Scott Greer e Elizabeth King (Universidade de
Michigan), Elize Massard da Fonseca (FGV-SP) e André Peralta-Santos (Escola
Nacional de Saúde Pública de Lisboa), acaba de lançar um compêndio de 663
páginas “Coronavirus politics”, (“A política do coronavírus”, ainda sem edição
em português mas com livre acesso em www.fulcrum.org/concern/monographs/jq085n03q).
Os pesquisadores, que começaram a trabalhar junto com o vírus, em março de 2020, cobriram a primeira fase da pandemia, até setembro de 2020, quando as políticas públicas se resumiam a intervenções não farmacêuticas (campanhas de higiene, equipamentos de proteção individual, respiradores, isolamento social, testes, rastreamento e auxílios monetários). Ao contrário do atual momento, de segunda onda em alguns países e terceira em outros, quando a busca pela vacina é decorrente de um esforço majoritariamente dos governos centrais, a primeira etapa da doença foi marcada, fortemente, por embates entre instâncias locais e nacionais.
Um dos achados mais importantes do livro é
o de que os governos locais, historicamente achatados pelas políticas de
contenção fiscal no mundo inteiro, atuaram como contraponto ou, como prefere
nominar Luísa Arantes, uma das autoras do capítulo sobre o Brasil, como um
“back-up” a governos centrais inoperantes. É bem verdade que não de maneira
uniforme. Nem no Brasil nem nos Estados Unidos.
Num extremo esteve o Maranhão, estrito em
suas políticas de isolamento e ativo na compra de equipamentos de proteção e de
respiradores, e no outro, Santa Catarina, que, ao abandonar precocemente o
isolamento social, viu o número de casos mais do que duplicar em menos de uma
semana. O federalismo se mostrou vivo com ou sem viés partidário. Se o Maranhão
do governador Flávio Dino (PCdoB) deu uma das piores votações ao presidente da
República, Santa Catarina sufragou, junto com o governador Carlos Moisés (PSL),
um dos melhores desempenhos de Jair Bolsonaro. Dino, porém, esteve do mesmo
lado, no cabo de guerra da pandemia, de governadores aliados de Bolsonaro, como
o de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM).
Nos Estados Unidos, se a governadora do
Michigan, Gretchen Whitmer, enfrentou a Casa Branca com sua política estrita de
isolamento, a governadora de Dakota do Sul, Kristi Noem, nada fez para impedir
que cerca de meio milhão de motociclistas se reunisse em uma festa no condado
de Sturgis, em agosto de 2020, numa das maiores aglomerações mundiais da
primeira fase da pandemia. Mais do que o viés democrata de Whitmer ou
republicano de Noem, foi decisiva a determinação em atender a população, como
foi o caso do governador republicano Mike DeWine, de Ohio, que fechou escolas
por três semanas e proibiu aglomerações.
Os governos locais também ganharam fôlego
com a pressão crescente por uma descentralização da gestão da saúde. Na Itália,
país que alarmou o mundo para a devastação da pandemia, 100 mil médicos
promoveram um abaixo-assinado por uma descentralização territorial da prestação
de serviços públicos de saúde. Em Milão, os profissionais promoveram um
protesto contra a deterioração de suas condições de trabalho dirigido a um
governo local que, inicialmente, resistiu ao isolamento social.
Os governantes locais que ganharam
condições de se contrapor às instâncias nacionais de poder na adoção de medidas
de isolamento o fizeram porque, em grande parte, dispuseram de políticas de
complementação de renda, regionais e nacionais, além de repasses federais que
lhes permitiram restringir atividades econômicas que geram receita para a
manutenção dos serviços públicos.
Estados Unidos, Índia e Brasil, diz Elize
Massard, são exemplos claros de que subvenção social só funciona se houver uma
política de saúde e esta vai muito além de uma infraestrutura hospitalar.
Estados Unidos e o Brasil tinham, respectivamente, de acordo com o índice de
segurança global de saúde (GHSI), da Universidade Johns Hopkins, o mais bem
preparado sistema de saúde do mundo e da América Latina para responder a
pandemias. E ambos fracassaram porque tiveram, no comando político nacional,
presidentes negacionistas. Os Estados Unidos somavam 23% dos mortos em todo o
mundo em agosto de 2020, apesar de ter apenas 4% da população mundial. O
Brasil, apesar de abrigar 2,7% dos habitantes do planeta, tinha 33% das vítimas
da covid-19 em março de 2021.
Apesar de subfinanciado, o NHS, sistema
público de saúde britânico inspirador do SUS brasileiro, fez com que o Reino
Unido pontuasse em segundo lugar mundial na gestão de sistemas de saúde
responsivos a pandemias, segundo o GHSI. Isso até o coronavírus, quando o Reino
Unido teve uma das piores taxas de mortalidade, depois da Espanha. Só foi salvo
pela vacina. Nem os testes massificados, que só perderam para a China, foram
capazes de neutralizar o atraso das medidas de isolamento social que marcaram a
primeira fase do combate à pandemia no governo Boris Johnson. As mortes
poderiam ter sido reduzidas pela metade se o lockdown de março de 2020 tivesse
acontecido uma semana antes.
As falhas também atravessaram o Canal da
Mancha. A França cometeu dois erros capitais no início da pandemia. O de
apostar na cloroquina, durante dois meses, até maio de 2020, e de ter demorado
na aquisição de equipamentos de proteção individual. O cochilo se deveu à
decisão tomada durante a epidemia de H1N1, em 2009, quando o governo, alarmado,
comprou € 1 bilhão em EPIs para enfrentar uma doença que “só” matou 342 pessoas
no país.
Superados esses erros, o governo
centralizou a resposta à pandemia e contou com um sistema de saúde que passou
por duas décadas de reforma. Ainda assim, só deu conta porque gastou muito para
manter o isolamento social, levando a população de rua para residências
temporárias e abrindo os hospitais públicos para imigrantes ilegais. Calcula-se
que a França tenha destinado 31% do seu Produto Interno Bruto em medidas de
compensação social e econômica e gastos na saúde. Os EUA, cujo primeiro pacote
aprovado pelo Congresso foi o maior da história, gastaram 18% do PIB.
O fôlego fiscal em todo o continente só foi
possível porque a União Europeia ativou a cláusula geral de escape, em abril de
2020, para não cumprir a meta de déficit fiscal. Reproduziu o que os autores
chamam de “momento hamiltoniano”, quando o governo americano, por inspiração do
então secretário do Tesouro, Alexander Hamilton, assumiu as dívidas de guerra
dos Estados depois da guerra da independência. A desigualdade na resposta à
pandemia no continente foi decorrente das gestões locais. Portugal, a exemplo
da França, saiu-se melhor que a Espanha e a Itália porque centralizou a reação.
Já Áustria e Suíça coordenaram melhor seus Estados federados do que a Alemanha,
cuja governança federativa foi conturbada pela disputa interna em torno da
sucessão de Angela Merkel.
Se na Europa a negligência com migrantes
foi relativizada em função da segurança sanitária, o mesmo não aconteceu na
China. Neste país, as políticas compensatórias não os englobaram. Estima-se que
na China haja 290 milhões de migrantes que não usufruem do sistema previdenciário
estatal porque trabalham fora de seus locais de registro. Houve uma política
deliberada de manter os migrantes ilegais longe dos centros urbanos.
Nas semanas que antecedem a virada do ano
lunar, que em 2020 caiu no dia 25 de janeiro, os chineses deixam suas casas e
visitam seus familiares. Mesmo já alertadas de que o vírus estava disseminado
na província de Hubei, as autoridades permitiram que as pessoas viajassem a
partir do dia 7 de janeiro. No dia 23 foi decretada uma quarentena draconiana. Ao
impedir que os chineses voltassem para suas casas nos grandes centros urbanos,
tentou-se evitar que as estruturas hospitalares ficassem sobrecarregadas. Isso
não impediu que hospitais de Hubei rejeitassem pacientes. A província tem 4% da
população do país e 1% dos leitos.
O pouco que se sabe do combate inicial à
covid-19 na China se deve à diplomacia da Organização Mundial de Saúde, que,
sob o preço da acusação de sinofilia, manteve canal aberto com autoridades
chinesas. Foi isso que permitiu à OMS monitorar minimamente o desenvolvimento
inicial da doença na China.
O comportamento das autoridades chinesas
não foi uma regra na Ásia. No Vietnã, por exemplo, o país pobre e populoso de
melhor resposta contra o vírus, a transparência era uma das únicas armas possíveis.
O Vietnã busca pontuação em rankings mundiais de governança para colher
benefícios diplomáticos e atrair investimentos estrangeiros. As outras armas,
num país sem um sistema de saúde robusto, foi o fechamento de fronteira,
quarentena para visitantes em instalações militares, multa para quem a
desrespeita e rastreamento. O país deixou de ter transmissão comunitária em
julho de 2020.
Se até aqui o estudo das instituições foi marcado por seus reflexos na estabilidade democrática e econômica, a pandemia indica uma inflexão em busca de desenhos institucionais que demonstrem eficiência na reação a emergências sanitárias. O desempenho do Brasil e dos Estados Unidos na primeira fase da pandemia demonstra que muitas dessas instituições são vulneráveis ao poder de maus líderes. A próxima parada do grupo de pesquisadores é a resposta global à vacina, quando o desempenho desses dois países se bifurca e isola o Brasil.
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