- O Globo
O general Eduardo Pazuello conquistou no
Supremo Tribunal Federal (STF) o direito de silenciar para não se incriminar na
CPI da Covid. Foi ao Senado e, bem treinado, falou. Num par de dias, seguiu à
risca a missão de (tentar) livrar de culpa o presidente da República e
repartir, com estados, municípios, Judiciário e empresas, a própria
responsabilidade no enfrentamento à pandemia da Covid-19, a mais grave em um
século. O ex-ministro da Saúde colaborou pouco, quase nada, para esclarecer
atos e omissões que já levaram à morte quase 450 mil brasileiros. Mas deixou às
claras o método de atuação política e gestão pública de um governo que despreza
a democracia. Não há compromisso com a palavra. O que Jair Bolsonaro diz não se
escreve.
Foi no que se anunciava como a quarta-feira do fim do mundo que Pazuello, em vez de medo, exibiu aos membros da CPI arrogância, e à família Bolsonaro, lealdade. Na sessão, a apoiá-lo estava o senador Flávio, filho Zero Um do presidente, tal como fez com Fabio Wajngarten, ex-secretário de Comunicação, e Ernesto Araújo, ex-ministro das Relações Exteriores, contradições e mentiras à parte, igualmente alinhados ao Planalto nos depoimentos. O relator Renan Calheiros esperava arrancar do general a confissão de que adiara a assinatura do contrato de compra da CoronaVac com o Instituto Butantan por ordem do mandatário, que assim anunciara em rede social e diálogo com apoiadores. Ouviu que não aconteceu.
“Ele falou publicamente. Para o ministério
ou para mim, nunca. Aquilo foi apenas uma posição do agente político na
internet. Uma postagem na internet não é uma ordem. Uma ordem é uma ordem
direta verbal ou por escrito. Nunca foi dada. Nunca”, declarou o general, sob
juramento.
Pazuello apartou o agente público do
político. Assim, escancarou a fragilidade da democracia brasileira sob
Bolsonaro, um líder que diz para desdizer e, assim, não se comprometer. “Ele
fez uma separação indicando que o presidente se comportaria bem na função, mas
como agente político faz seu show. Isso não existe. Há uma figura só. A
democracia depende de procedimentos formais, de pesos e contrapesos das
instituições, como Congresso, Judiciário. A informalidade sugerida por Pazuello
é amiga do autocrata e profundamente nociva à democracia”, resume o cientista
político Sérgio Abranches, autor de “Presidencialismo de coalizão” e “O tempo
dos governantes incidentais”.
Foram os Estados Unidos de Donald Trump que
inspiraram Jair Bolsonaro a se comunicar via internet, fazendo da confusão,
método. Ao longo da gestão do ex-presidente americano, era comum servidores
dizerem que ignoravam manifestações públicas que ferissem normas técnicas. No
caso brasileiro, se o discurso negacionista no enfrentamento à pandemia não se
materializa formalmente, é possível dizer que a ordem dada não existiu, analisa
Marcelo Träsel, especialista em democracia e desinformação, professor da UFRGS
e presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji):
“Esta é justamente a estratégia bolsonarista, não deixar um rastro de papel que
possa ser levantado pela CPI, por jornalistas ou pelo Judiciário”.
Não é erro nem incompetência, é projeto. No
Brasil, manipulação e mentira estão a serviço da política. A palavra do líder
não o responsabiliza, mas foi por ela que o eleitor o escolheu. “É uma farsa.
Não há outra maneira de classificar. Na percepção do público, não existe
separação entre o que o presidente materializa num ofício, numa ordem, num
decreto e o que ele fala nas redes sociais. Então, me parece bastante evidente
que o único objetivo das justificativas na CPI é tentar separar a persona de
Jair Bolsonaro nas redes sociais de sua atuação como presidente. É uma
tentativa de confundir a população e de se livrar de eventuais sanções
jurídicas por negligência na condução da coisa pública”, diz Träsel.
Método explicitado por Pazuello, o rei está nu. Houvesse somente a militância acrítica, o Brasil estaria lascado. Mas a tragédia experimentada na pandemia acordou setores da sociedade. Na última pesquisa Datafolha, mais da metade dos brasileiros (51%) considera ruim ou péssimo o enfrentamento de Bolsonaro à pandemia; 45% avaliam negativamente o governo. A rejeição é mais alta nos grupos historicamente excluídos e/ou particularmente prejudicados pela combinação das crises sanitária, social e econômica. As piores avaliações são de mulheres (50% de ruim ou péssimo), pretos (53%), jovens (49%), estudantes (57%), assalariados sem carteira (50%), desempregados (53%), servidores públicos (58%) e desalentados (47%). Impossível enganar todo mundo o tempo todo.
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