- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Não temos tido reações populares dos efeitos socialmente destrutivos do coronavírus e das ações infantis e irresponsáveis do governo
O que causa estranheza na versão brasileira
desta pandemia é que não está tendo, entre nós, os efeitos pedagógicos e
civilizadores que tiveram em outros países os grandes desastres: guerras,
terremotos, tsunamis e, mesmo, epidemias, como a peste negra.
Esses eventos extraordinários desmontam a
estrutura da sociedade, anulam a eficácia de suas regras sociais, invalidam
valores que formam o substrato da consciência social, dos relacionamentos e da
própria atitude perante a vida. Eles fragilizam as referências da estabilidade
e da continuidade social. Causam rupturas sociais que são desafios de
criatividade e de remodelação das sociedades.
Em todas essas situações, cada sociedade
expõe seus próprios mecanismos, quase sempre inconscientes, de despertamento de
uma sociabilidade de emergência. Com muita rapidez a sociedade se reinventa, às
vezes em questão de minutos ou de poucas horas.
Essa característica das relações sociais foram detectadas nos experimentos etnometodológicos concebidos e praticados pelo cientista social Harold Garfinkel. Em seus experimentos, pessoas colocadas em face de situações sociais imaginárias de supressão de referências de conduta e de dilemas reduzidos às alternativas “sim” ou “não” logo percebem o roteiro implícito na situação adversa e vão inventando padrões alternativos de comportamento que suprem a falta das referências da conduta costumeira.
Num outro plano, a sociedade pós-catástrofe
também carrega e preserva, daí em diante, as orientações e descobertas da
situação de emergência. É normal que as sociedades mudem em decorrência dos
desafios representados por acontecimentos desconstrutivos de valores e normas.
A Segunda Guerra Mundial deixou na Europa e
no Japão um legado de civilidade, no alargamento da tolerância social, na
renúncia, ao menos parcial, aos exageros da ostentação, na valorização do
menos, do pouco e do existente, na cooperação social, no respeito aos bens
públicos e ao bem comum.
Naquele evento trágico, as pessoas se
ressocializaram para o que veio a ser a nova sociedade do pós-guerra. Em alguns
casos, a mudança foi facilitada pela consciência do vazio. Como ocorreu na
Alemanha, também pela deliberada ação de desnazificação promovida pelos
americanos e pelos aliados ocidentais. Os vencidos o são porque fragilizados no
direito de ser o que sempre foram. Ficam à mercê de quem os vence, têm que
aprender a viver com as sobras culturais e materiais da derrota.
As epidemias e os desastres naturais podem
ter efeitos semelhantes aos da derrota numa guerra no vazio que criam, na
peculiar pobreza de valores e de normas sociais válidos.
O Brasil da pandemia e da catástrofe
eleitoral de 2018 é, a seu modo, um país derrotado pelas peculiaridades dessas
adversidades, porque estão corroendo as instituições e o amor próprio dos
brasileiros. Com a diferença de que, neste caso, o inimigo do país e vencedor é
completamente incompetente para impor um modelo social e político de sua
reordenação.
Aqui no Brasil, não temos tido reações
populares de reconhecimento dos efeitos socialmente destrutivos da pandemia e
das ações infantis e irresponsáveis do governo, que dela se aproveita para
consumar um golpe de estado silencioso e lento.
A sociedade brasileira mostra-se uma
sociedade politicamente desvalida, sem organizações políticas capazes de
mobilizá-la em relação a todos os variados âmbitos em que ela vai sendo
fragilizada. E não me refiro apenas à pandemia, mas também à miséria social.
Nem Bolsonaro nem seus ministros tem demonstrado, por mínima que seja, a
compreensão apropriada e consistente do que está ocorrendo aqui.
O governo já se revelou inconsciente e
incapaz de conceber e viabilizar um grande plano de reforma econômica, política
e social, de que o país carece para renascer das cinzas. Notoriamente, carece
de legitimidade para o imenso desafio do momento histórico. Nisso, o Congresso
Nacional não está melhor do que o Executivo.
Portanto, mesmo que a pandemia possa ser
debelada nos próximos meses, não há qualquer indício de que Estado e sociedade
tenham condições de agir no sentido de superar os danos sociais agravados pela
pandemia.
De qualquer modo, os cientistas sociais
tampouco têm se revelado sensíveis aos desafios de deciframento do que foi que
de fato aconteceu em 2018. Um governo com cotidianas demonstrações de conduta
anômala em face de uma sociedade em estado de anomia pede que nele se aplique a
técnica dos estudos a distância, na linha antropológica preconizada por Mead e
Metraux, em antologia de 1953.
É possível e necessário decifrar
cientificamente os segredos e fatores da anormalidade, tanto do presidente,
quanto do governo paralelo.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Moleque de Fábrica" (Ateliê).
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