- O Globo
Transcorridas três semanas de depoimentos
na CPI da Covid, os senadores estão convencidos de uma coisa: além de ver a
responsabilização de autoridades pela calamidade brasileira na pandemia, a
população quer uma reparação para um luto traumático, prolongado, que tem sido
tratado com profundo desprezo por Jair Bolsonaro e seus subordinados,
familiares e aliados. O relatório final do senador Renan Calheiros deverá
abranger as duas dimensões.
No campo da responsabilização, a sucessão
de depoimentos deixa claro que há um trabalho árduo e técnico a fazer, que até
aqui deixou a desejar.
É preciso esquadrinhar os principais eixos
de crimes cometidos para que se alcançasse a marca inadmissível de mortos, que
deverá chegar em breve a aterrador meio milhão de brasileiros, e traçar a
cronologia, a cadeia de comando e a correta imputação jurídica em cada um
deles.
Esses eixos, definidos desde o início dos
trabalhos, são três: a decisão de postergar ao máximo a compra de vacinas,
único meio cientificamente seguro de proteger vidas; a ênfase, com largo
emprego de recursos públicos, no “tratamento precoce”, sabidamente sem eficácia
científica para Covid-19, e a tragédia de Manaus.
Uma quarta frente aventada depois da instalação da CPI, a aposta por parte do governo federal numa imunidade de rebanho sem vacina, que seria obtida fazendo com que o maior número de pessoas se contaminasse para que as atividades econômicas pudessem ser retomadas mais rapidamente, é considerada de mais difícil demonstração fática.
Por isso mesmo, essa avaliação deverá
compor a segunda dimensão do parecer final, que será a reparação pelo luto
nacional, a expressão humana da tragédia brasileira na mais séria crise deste
século e quanto o negacionismo de Bolsonaro e companhia contribuiu para isso.
“No geral, estamos somando peças para um
processo que é de responsabilização, mas também de esclarecimento para a
população. Estamos todos sufocados pelo coronavírus e pelas mentiras
continuadas”, resume o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), um dos autores
do requerimento de criação da CPI e membro suplente da comissão.
Esse sufocamento explica a catarse nacional
assistida a cada sessão de depoimentos da CPI. Não se duvide: essa adesão, com
enorme potencial danoso para sua imagem, enlouquece Bolsonaro muito mais que o
salto diário de mais de 2.000 mortes, pelas quais ele jamais decretou luto
nacional, ou nunca se compadece ou é incapaz de reconhecer alguma
responsabilidade.
É o fator “Big Brother” da CPI que atordoa
o presidente, que leva a desabafos como o do ministro das Comunicações, Fábio
Faria, que entende o tamanho do estrago.
Mas só fazer uma investigação midiática não
adianta. Ainda mais porque os depoimentos com esse potencial tendem a rarear
daqui para a frente.
É necessário que a CPI seja cirúrgica na
imputação de responsabilidades e eloquente ao cumprir o papel de expiar a
tragédia de um ano e quatro meses.
O mesmo senador Alessandro citou na sessão
de quinta-feira o julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém, ao se referir a
uma certa banalização do mal verificada na conduta das autoridades no curso da
pandemia.
É sempre um risco fazer qualquer analogia ao genocídio mais bárbaro da História da humanidade, o cometido pelo nazismo contra o povo judeu. Mas o comportamento de burocratas que, como Eduardo Pazuello, insistem em minimizar sua contribuição para que tenhamos chegado até aqui, e não reconhecem nem sequer o cometimento de erros para que o Brasil tenha uma das piores respostas globais ao coronavírus é, sim, um aspecto que precisa ser contemplado pela CPI. Em respeito à memória dos que perderam a vida quando poderiam ter sido salvos —e de quem chora essas pessoas.
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