A Lei Áurea é
considerada um marco social, pela extinção do regime escravocrata, e marco
legal pela simplicidade de apenas um artigo: “É declarada extinta desde a data
desta lei a escravidão no Brasil”. Nada mais do que 12 palavras e acabou a
infâmia de tratar pessoas como mercadoria.
Esta simplicidade
deixou a lei incompleta e de certa forma inócua para o propósito de ir além da
proibição da venda, compra e propriedade de pessoas, e de servir também para a
garantia da liberdade, promoção social e progresso dos afrodescendentes no
Brasil. Aquele artigo simples foi capaz de acabar com os grilhões, mas não de
incorporar a população negra à sociedade brasileira. Manteve-se a desigualdade,
a exclusão, a pobreza e, consequentemente, o racismo.
Teria sido diferente se a Lei Áurea tivesse mais um artigo: “Fica estabelecido no Brasil um sistema único, público, de educação para todos”. Mas a lei ficou incompleta. Ao longo dos 134 anos de sua vigência, comemorados na semana que passou, o Brasil sem escravismo manteve a escravidão, porque sem educação as algemas físicas que aprisionavam os escravos se transformaram em algemas mentais que amarram todos os pobres brasileiros. Não apenas os negros, mas sobretudo estes, por formarem a maior parte dos pobres do País.
Ao longo destes
134 anos, desde 1888, o Brasil manteve uma desigualdade abismal entre a
educação dos que podem pagar por uma boa educação e aqueles que não podem. Se
desde aquela época os descendentes dos escravos e seus senhores estudassem em
um mesmo sistema escolar com qualidade para todos brasileiros, ao longo destas
três ou quatro gerações, a desigualdade que ainda existisse, além de pequena,
seria graças ao talento dos que se dedicam aos estudos. A desigualdade não
seria herança financeira, que termina sendo também herança racial. Sem o
segundo artigo, a Lei Áurea ficou incompleta.
Além da lei
incompleta de 1888, atravessamos toda a história pós-abolição e republicana sem
acrescentar o artigo e outras ações que faltam. Por 40 anos depois da Lei, nem
ao menos criamos um Ministério da Educação; quando criado já nos anos 1930,
serviu para coordenar a educação da minoria dos filhos da população branca e
rica, ou quase rica, nas poucas escolas de base que foram criadas ao longo das
décadas. A obrigatoriedade de vaga aos seis anos só veio em 1988 com a Constituição;
aos 4 anos, em 2013; a obrigatoriedade de vaga até os 17 anos, só em 2016; o
Piso Nacional Salarial para o Professor, em 2008.
Até hoje, o
Brasil deixa a educação nas mãos dos pobres e desiguais municípios. Foram
feitas leis como a Merenda Escolar (1955), Emenda Calmon (1983), Livro Didático
(1985), Fundef (1996), PNE-I (2001), Fundeb (2007), Piso Salarial do Professor
(2008), PNE-II (2011), BNCC (2020), e o Brasil continua com educação entre as
piores do mundo e provavelmente a mais desigual entre todos os países.
Até hoje, o
Brasil não decidiu completar a Lei Áurea criando um Sistema Nacional de
Educação de Base. A sociedade brasileira, seus eleitores e líderes continuam
com a mesma visão da Princesa Izabel e do Primeiro-Ministro João Alfredo -
basta o primeiro e único artigo da Lei Áurea, a educação de cada criança é
assunto da família ou do prefeito, não do país. O resultado é que um século e
meio depois da Lei Áurea, temos duas vezes mais adultos analfabetos do que no
ano da abolição incompleta, todos eles pobres e quase todos afrodescendentes.
Na verdade, todos
os governos seguintes, ditadura ou democracia, de direita ou esquerda,
negaram-se a assumir a educação de nossas crianças como uma questão nacional:
levar a sério o artigo da Constituição que assegura a educação como um direito
de todos os brasileiros e tornar a educação como o vetor do progresso do país.
Nos navios
negreiros, havia marujos com a tarefa de impedir os escravos desesperados pularem
no mar, já que a morte deles era uma perda financeira para o proprietário.
Hoje, não oferecemos escolas que assegurem a seus alunos quererem permanecer
nelas, e se eles quiserem pular no mar da deseducação, aceitamos que o façam
sem percebermos a perda que isso representa para o futuro de cada um deles,
para suas famílias e para todo o País.
Faz 134 anos que
demos alforria aos escravos, mas não os libertamos, porque não lhes demos a
educação, sem a qual a liberdade é apenas uma ilusão. Por falta de um artigo a
mais na Lei Áurea, mantivemos uma última trincheira da escravidão, mantivemos
os descendentes dos escravos em um novo tipo de servidão e amarramos o
progresso do país.
*Professor Emérito da Universidade de Brasília
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