EDITORIAIS
Bolsonaro em casa
O Estado de S. Paulo
Com a anunciada ida ao PL, Jair Bolsonaro vai oficialmente para onde sempre esteve. Sempre foi Centrão, sempre foi baixo clero, sempre foi parte da política miúda
No PL, vai para onde sempre esteve. No
Centrão, no baixo clero, na política miúda.
Jair Bolsonaro foi eleito presidente da
República prometendo uma nova política. Chegou a dizer que apoiaria uma reforma
política que acabasse com a reeleição. Não fez nada disso. Agora, dá mais um
passo no abandono do figurino de 2018, assumindo sua verdadeira identidade
política. Segundo o anúncio oficial, Jair Bolsonaro vai se filiar no dia 22 de
novembro ao PL, o partido de Valdemar Costa Neto.
A escolha do PL, se confirmada, é muito
significativa. Revela, em primeiro lugar, a incapacidade do bolsonarismo de
criar uma legenda. Em novembro de 2019, Jair Bolsonaro desfiliou-se do PSL,
anunciando a intenção de criar uma tal Aliança pelo Brasil. No entanto, a nova
legenda não saiu do papel. O presidente e seus apoiadores simplesmente não
conseguiram realizar uma tarefa que, mesmo não sendo fácil, está longe de ser
impossível. Marina Silva, por exemplo, conseguiu o registro da sua legenda na
Justiça Eleitoral. Jair Bolsonaro nem isso fez. O fracasso da Aliança pelo
Brasil diz muito sobre a disfuncionalidade do bolsonarismo para construir o que
quer que seja.
Incapaz de criar uma legenda para chamar de
sua, Jair Bolsonaro precisava escolher um partido. A filiação partidária é
requisito constitucional para concorrer a cargo político. Foi acintosa, no
entanto, a escolha da legenda. Havendo tantos partidos no País – até muito mais
do que seria razoável –, Jair Bolsonaro escolheu justamente o partido de Valdemar
Costa Neto, uma das figuras centrais do mensalão. Ou seja, aquele que, nas
eleições presidenciais de 2018, dizia ser o candidato mais antipetista não tem
agora a menor inibição de pedir abrigo partidário a quem participou ativamente
de um dos maiores escândalos do PT.
Há muitas incoerências nessa história, mas é preciso reconhecer uma coisa. A filiação de Jair Bolsonaro ao PL está perfeitamente alinhada com sua trajetória política. O slogan da campanha de 2018 – “meu partido é o Brasil” – nunca correspondeu aos fatos. Jair Bolsonaro é um dos políticos que mais se beneficiaram do atual sistema partidário, altamente fragmentado, com legendas sem identidade e sem programa político, estruturadas a partir do interesse de seus caciques. Em 1990, Jair Bolsonaro foi eleito deputado federal pelo PDC. Depois, passou pelo PPR (1993-1995), PPB (19952003), PTB (2003-2005), PFL (2005), PP (2005-2016), PSC (2016-2017) e PSL (2018-2019).
Questionado sobre sua filiação ao partido
de Valdemar Costa Neto, Jair Bolsonaro retrucou com sua lógica peculiar. “Vou
conversar com PSOL e PCdoB?”, questionou em entrevista ao Aos críticos de sua
nova escolha partidária, Jair Bolsonaro poderia simplesmente ter mencionado sua
história. Quem esteve por mais de uma década no PP de Paulo Maluf – foi o
partido no qual Jair Bolsonaro ficou por mais tempo – não tem motivos para
nutrir inquietações de consciência em razão de uma filiação ao PL de Valdemar
Costa Neto.
Com a anunciada ida ao PL, Jair Bolsonaro
vai oficialmente para onde sempre esteve. Sempre foi Centrão, sempre foi baixo
clero, sempre foi parte da política miúda. Poucas cenas representam tão
fielmente a real estatura política de Jair Bolsonaro como sua entrada na Câmara
dos Deputados, para a sessão solene de posse no dia 1.º de janeiro de 2019,
cumprimentando sua turma no Congresso. Não havia compostura presidencial. Tudo
remetia à ideia de camarilha.
Ao aceitar o presidente da República em
seus quadros, o PL revela também como o Centrão se sente confortável com o
governo de Jair Bolsonaro. Suas chances de reeleição não são animadoras, mas
isso não é problema para legendas como o PL – hábeis não apenas em aderir ao
vencedor das eleições, mas em pular do barco antes do naufrágio. Aqui, a razão
é outra. Com sua inesgotável capacidade de criar atritos e problemas, aliada à
falta de rumo, Jair Bolsonaro oferece ao Centrão o cenário dos sonhos: um
governo fraco, com o qual se pode barganhar ininterruptamente, com ganhos cada
vez mais altos. Por que não irão aproveitar o folguedo até o último momento?
O Brasil real continua travado
O Estado de S. Paulo
Na maior parte deste ano houve recuos
mensais na produção industrial e nas vendas do comércio varejista
O Brasil próspero e otimista do ministro da
Economia, Paulo Guedes, continua muito diferente do país de milhões de outros
brasileiros, onde o emprego é escasso, a indústria derrapa e o varejista se
defronta com um consumidor empobrecido, inseguro e acuado por uma inflação
devastadora.
O volume vendido no varejo do dia a dia
diminuiu 1,3% em setembro, depois de haver encolhido 4,3% em agosto. Também em
setembro a indústria produziu 0,4% menos que no mês anterior, acumulando quatro
reduções consecutivas. Promoções de fim de ano, incluída a Black Friday, podem
criar alguma animação nas próximas quatro ou cinco semanas. Mas o quadro geral
continuará sombrio até o fim de 2022, segundo as projeções correntes, com
economia estagnada, forte alta de preços e dinheiro cada vez mais caro.
O balanço do terceiro trimestre será ruim,
a julgar pelos números já conhecidos da indústria e do varejo. Mostrará, no
entanto, apenas o prosseguimento de uma recuperação insegura e precária. Depois
do primeiro choque da pandemia, a retomada pareceu vigorosa, durante alguns
meses, mas o impulso diminuiu sensivelmente a partir do começo de 2021. Em sete
dos nove meses de janeiro a setembro houve recuo da produção industrial. No
comércio varejista houve resultados negativos em cinco dos nove meses, na
comparação com o período imediatamente anterior.
Mais de 19 milhões caíram na extrema
pobreza, no começo do ano, com a suspensão do auxílio emergencial. Esse
desastre social explica boa parte da redução das vendas nos primeiros meses de
2021. Nos meses seguintes, a disparada dos preços e o encarecimento do crédito,
com a alta de juros, tornaram mais complicada a situação, já muito precária, da
maior parte das famílias.
Durante todo o tempo, a persistência do
desemprego elevado e das más condições de trabalho assombraram os brasileiros.
O ministro da Economia costuma alardear melhoras do emprego formal, mas os
dados, mesmo quando verdadeiros, são pouco significativos quando confrontados
com os cenários mais amplos mostrados pelo IBGE. Além disso, é difícil confiar
na fonte do ministro, o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged).
Um ajuste recém-divulgado diminuiu quase pela metade os números de 2020,
anunciados sempre triunfalmente pela equipe econômica.
No varejo do dia a dia, formado pela maior
parte das atividades comerciais, as vendas de setembro, além de 1,3% menores
que as de agosto, foram 5,5% inferiores às de um ano antes. O varejo ampliado,
formado com inclusão das lojas de veículos, motos, partes e peças e também de
material de construção, vendeu 1,1% menos que no mês anterior e 4,2% menos que
em setembro de 2020.
O quadro parece muito melhor quando se
comparam períodos longos. No ano, o comércio do dia a dia vendeu 3,8% mais que
entre janeiro e setembro de 2020. No caso do varejo ampliado, o confronto
aponta um aumento de 8%. Mas a base de comparação é muito baixa e por isso a
recuperação parece mais vigorosa.
A percepção se torna mais precisa quando se
tomam como referência períodos anteriores à pandemia. Em setembro, as vendas do
varejo restrito foram 0,4% menores que as de fevereiro de 2020, último mês
antes do grande choque. As do varejo ampliado foram 1,7% inferiores às daquele
mês. No caso da produção industrial, a comparação mostra um volume 3,2% abaixo
do patamar de fevereiro do ano passado.
Mas o Brasil já ia mal no primeiro bimestre
de 2020, antes dos estragos causados pela covid-19. A economia mal havia
começado a se recobrar da recessão de 2015-2016. Em 2019, início do período
Bolsonaro, o crescimento foi menor que em 2018. O Brasil já estava longe dos
picos de atividade alcançados antes daquela crise e assim continua. No
trimestre móvel terminado em setembro a indústria produziu 19,4% menos que em
maio de 2011 e o varejo continuou abaixo do patamar de outubro de 2014.
Pelo menos os parlamentares do Centrão podem manter algum otimismo em relação aos próximos 10 ou 12 meses. O presidente continuará precisando de seu custoso apoio.
Perto da estagflação
Folha de S. Paulo
Inflação sobe no mundo, mas no Brasil é
agravada por governo e risco de recessão
A aceleração abrupta da inflação neste ano
é um fenômeno global, que abarca até países acostumados ao problema oposto,
como o Japão.
Na maior parte do mundo, entretanto, as
pressões de preços, que derivam dos deslocamentos no consumo e na produção por
causa do impacto da pandemia, têm sido acompanhadas pela perspectiva de
crescimento econômico também elevado no próximo ano.
Já no Brasil a situação é mais
desfavorável. A combinação de inflação alta e risco recessivo sugere retorno a
um quadro de estagflação infelizmente comum no país.
Os números são aterradores. O principal
índice do custo de vida, o
IPCA, subiu 1,25% em outubro, a maior taxa para o mês desde 2002, e acumula
10,67% em 12 meses. A generalização da carestia para itens como serviços sugere
maior inércia e já contamina as projeções para 2022 —que se aproximam de 5%, bem
acima da meta de 3,5%.
A consequência é uma maior dificuldade para
o Banco Central fazer a inflação retornar aos objetivos traçados, e os juros,
por isso, deverão subir mais. Não se descarta que a Selic chegue a 11% ou até
mais nos próximos meses.
O quadro é agravado pela ausência de
direção da política econômica, algo de resto confirmado pela tramitação da PEC
do Calote, que fura o teto de gastos e eleva a dívida pública —receita para o
aperto nas condições financeiras.
É essa configuração de fragilidades e
desconfiança que distingue negativamente o Brasil. Embora a inflação elevada
seja desconfortável em todos os lugares, lá fora ao menos há confiança na
transitoriedade do fenômeno.
Nos Estados Unidos, por exemplo, o índice
de preços ao consumidor chegou a 6,2% em 12 meses, mas espera-se retorno ao
ritmo normal de 2% ao ano. Tampouco há risco de crédito do governo.
É por isso que o Federal Reserve pode se
dar ao luxo de ser paciente e não subir os juros até meados do ano que vem,
quando se espera que o mercado de trabalho já esteja próximo da normalidade.
Na soma geral, as projeções mais comuns
apontam para alta do Produto Interno Bruto americano próxima a 3,5% em 2022.
Aqui, empresas e consumidores não têm a
mesma expectativa. A inflação é mais dura que alhures, pois foi agravada pela
desvalorização do real e pode se perpetuar pela indexação. Ao mesmo tempo, os
juros cada vez mais escorchantes reduzem o crescimento e a perspectiva de retomada
do emprego.
A estagnação parece contratada e já se faz
notar na perda de ritmo mesmo em áreas até recentemente mais defendidas, como
as vendas no varejo. As chances de melhora dependem da política econômica que
emergirá das eleições.
Caos etíope
Folha de S. Paulo
Guerra civil iniciada por ganhador do Nobel
da Paz completa um ano de devastação
Um ano após seu início, a guerra
civil que assola o norte da Etiópia ganha contornos cada vez mais
dramáticos, afundando o segundo país mais populoso da África em caos e
catástrofe humanitária.
Na semana passada, o governo etíope
declarou estado de emergência em todo o país depois que insurgentes da região
do Tigré anunciaram a captura de novos territórios e a intenção de marchar rumo
à capital Adis Abeba.
A medida de exceção foi tomada dois dias
depois de o primeiro-ministro Abiy Ahmed ter conclamado a população a pegar em
armas para lutar contra a Frente de Libertação do Povo do Tigré (TPLF) e
afirmar que "morrer pela Etiópia é um dever de todos nós".
A retórica inflamada estendeu-se às redes
sociais, onde uma mensagem do premiê foi suprimida pelo Facebook por incitação
à violência.
Não deixa de ser uma ironia da história
que, menos de dois anos atrás, o mesmo Ahmed era galardoado com o Nobel da Paz
"por seus esforços em alcançar a paz e a cooperação internacional"
que encerraram duas décadas de hostilidades com a vizinha Eritreia.
Onze meses depois, o premiê lançava a
Etiópia numa guerra de consequências imprevisíveis para a região e devastadoras
para o país.
As contendas tiveram início após a TPLF,
que comandou o país de 1991 a 2012, promover no Tigré eleições que haviam sido
suspensas pelo governo central em razão da pandemia. A tensão logo deu lugar ao
enfrentamento. Acusando as forças tigrínias de atacar uma base do Exército,
Ahmed retaliou.
A TPLF reagiu, retomando o controle da
região e avançando sobre áreas vizinhas. Numa mistura de embate étnico com
disputa pelo poder, o conflito vem ganhando novos atores. Nove grupos de
oposição ao governo anunciaram recentemente uma aliança com a TPLF para retirar
Ahmed do poder.
Como sói ocorrer, a população civil tem
sido a principal vítima da guerra. Estima-se que 2 milhões de etíopes já tenham
sido deslocados no Tigré, e 400 mil pessoas enfrentam grave escassez de
alimentos, na maior crise humanitária dos últimos anos no leste da África.
Os dois lados, ademais, são acusados de violações de direitos humanos, incluindo estupros e torturas.
Para além desse saldo trágico, o risco agora é que o conflito ultrapasse as bordas da Etiópia e gere novas instabilidades numa região do continente já marcada por guerrilhas e pelo extremismo islâmico.
A complacência do PT com a ditadura de
Daniel Ortega
O Globo
É patético o comportamento da direção do PT
no episódio envolvendo a farsesca eleição do ditador Daniel Ortega na
Nicarágua. A cada dia que passa, Ortega se parece mais com o sanguinário tirano
Anastasio Somoza que ele, à frente dos sandinistas, expulsou do país em 1979.
De lá para cá, ficou fora do poder apenas entre 1990 e 2006. Hoje Ortega
controla o Legislativo, o Judiciário, a autoridade eleitoral, já deixou grupos
paramilitares que o apoiam matar manifestantes e, para aparecer como “vencedor”
no domingo, prendeu candidatos da oposição.
Na terça-feira, Romênio Pereira, secretário
de relações internacionais do PT, deu uma clara demonstração de que, no Brasil,
viver numa realidade alternativa não é monopólio da extrema direita. Pereira
felicitou Ortega numa nota em que destacou o “apoio da população a um projeto
político que tem como principal objetivo a construção de um país socialmente
justo e igualitário”. Como assim?
Diante da repercussão negativa, a deputada
federal Gleisi Hoffmann, presidente do PT, usou uma rede social para tentar
apagar o incêndio, dizendo que a nota não tinha sido submetida à direção
partidária. Em seguida, o conteúdo do texto que felicitava Ortega foi retirado
do site petista. As duas medidas foram acertadas, mas não convenceram. Ficou
faltando o principal — uma crítica contundente à ditadura nicaraguense.
A cúpula petista não pode alegar
desconhecer o que se passa. Em entrevista a um canal de TV do México em agosto,
Luiz Inácio Lula da Silva aconselhara Ortega a “não abrir mão da democracia” e
a apreciar a importância da alternância de poder. Por que o silêncio agora?
A explicação é a condescendência com que os
petistas tratam ditaduras de esquerda tidas como “amigas” do partido. Basta
lembrar a proximidade que havia entre Lula e Fidel Castro ou o histórico da
relação do PT com Hugo Chávez e Nicolás Maduro. No máximo, o ex-presidente se
permite criticar a política econômica da Venezuela.
O PT parece temer perder o apoio de quem
ainda acredita na ideia absurda de que uma ditadura de esquerda pode ser boa,
um resquício dos anos 1960. Seria também oportuna uma revisão da leitura feita
por setores da esquerda dos Anos de Chumbo no Brasil. Muitos entre os que
pegaram em armas para combater a ditadura militar tinham como meta não a democracia,
mas a criação de uma outra ditadura, alinhada a Moscou. Que parte desses jovens
tenha sido barbaramente torturada e executada pela política de repressão do
Estado é uma das mais terríveis manchas na História brasileira, que nunca deve
ser esquecida. Outro aprendizado crucial é evitar a armadilha de retratar os
movimentos revolucionários de esquerda da década de 60 como democratas. Não
eram.
Nenhuma ditadura jamais foi, nem nunca será
a melhor alternativa. Será sempre sinônimo de imprensa silenciada, prisões
políticas, torturas, desaparecimentos e mortes. É por isso que todas — à
direita ou à esquerda, presentes ou do passado— devem ser condenadas com
veemência. O PT, que acerta quando critica os pendores autoritários e golpistas
do governo Jair Bolsonaro, deveria deixar claro que a democracia é um valor
absoluto e condenar com vigor as ditaduras de esquerda.
Juro é a única arma ao alcance para conter
a inflação descontrolada
O Globo
A inflação acumulada em 12 meses não para
de subir. De outubro a outubro, foi de 3,9% a 10,7%. Errou quem acreditava numa
inflação temporária, resultado apenas da retomada de atividades represadas pela
pandemia. A alta de preços está descontrolada: subiram alimentos e serviços,
combustíveis e energia, vestuário e transporte. As consequências para a
população são dramáticas — e os efeitos políticos, incontornáveis.
Pesquisas de opinião confirmam que a pauta
econômica superou a pandemia como eixo de preocupação dos cidadãos. Felizmente,
o Brasil ainda dispõe de meios para deter a espiral dos preços, mas o governo
precisará agir rápido, com toda a energia necessária. Trata-se, por sinal, de
questão de sobrevivência para quem disputa a reeleição.
A inflação resulta, segundo os manuais de
economia, da interação de quatro forças: inércia, câmbio, expectativas e
pressão da demanda sobre a produção. Na conjuntura atual, apenas o último fator
tem contribuído para reduzir a inflação, já que ainda há ociosidade, uma distância
grande entre o que a economia tem forças para produzir e o que ela de fato
produz. Todos os demais três fatores pressionam os preços.
A alta consistente no índice de inflação ao
longo dos meses traduz o primeiro fator: a inércia (influência dos preços do
passado no futuro). Empresários reajustam suas tabelas para arcar com custos
mais altos, como energia, combustíveis ou aumentos salariais. Trabalhadores
fazem pressão por maiores salários para poder pagar comida e transporte mais
caros. E por aí vai.
O câmbio — segundo fator — deveria
funcionar como válvula de escape da inflação. A demanda externa por commodities
brasileiras aumenta as exportações, atrai dólares e deveria derrubar a cotação
da moeda. Com isso, produtos importados deveriam se tornar mais competitivos e
obrigar as empresas brasileiras a segurar os preços. Por que isso não acontece?
Pela mesma razão que deteriora o terceiro fator, as expectativas: desconfiança.
A situação de incerteza política e
descontrole fiscal (que culminou na ameaça ao teto de gastos) cria dúvida entre
os investidores sobre a capacidade de o governo honrar seus compromissos,
piorando as expectativas. Com duas consequências. Primeiro, o dólar se torna
refúgio para preservação do capital e deixa de cumprir seu papel regulador da
inflação. Segundo, o governo se vê obrigado a pagar mais caro para captar o
dinheiro de que precisa para tapar o buraco fiscal — aumentando o juro.
Sem um ajuste nas contas ou uma âncora que
assegure, ao longo do tempo, solvência e controle da dívida pública — a que
resta é o teto moribundo —, os juros são a arma de que o país dispõe para
interferir nos outros fatores. Juros altos funcionam como um ímã para o
capital. Ajudam a segurar câmbio e demanda, portanto os preços. São um remédio
amargo, pois significam menos investimento produtivo e menos emprego. Mas, no
curto prazo, é o único ao alcance, enquanto temos uma classe política incapaz
de entender a relevância do equilíbrio fiscal para o país e para sua própria
sobrevivência.
BC precisa ter cautela e testar o nível
adequado da Selic
Valor Econômico
No estado frágil da economia, um
overshooting de juros não seria a coisa certa a fazer
A inflação disparou, os juros estão subindo
rapidamente e a economia começou logo a perder fôlego. É possível, desta forma,
que o aperto monetário não precise ir tão longe quanto os investidores estão
sugerindo apressadamente. Em setembro, o varejo caiu 1,3%, o maior recuo desde
2000 no mês, e voltou a um nível de negócios inferior ao pré-pandemia. No mesmo
mês, houve a quarta queda consecutiva da atividade industrial. O setor de
serviços, o de maior peso no PIB, ainda se recupera com a volta da mobilidade.
O IPCA de outubro, de 1,25% levou a inflação em 12 meses a 10,67%.
Variações de insumos básicos para toda a
economia, como energia e combustíveis, e de alimentos somaram 0,96 pontos
percentuais, ou três quartos do IPCA de setembro. O choque na inflação vem da
combinação de altas internacionais de energia e combustíveis com a
desvalorização do real. A grande enrascada é que o aumento da taxa de juros
praticamente não tem influência sobre problemas na oferta, e alguma sobre o
câmbio, que está sendo mais que anulada pela bagunça fiscal criada pelo governo
e seus aliados, e pelas decorrentes incertezas sobre as contas públicas.
A magnitude das altas impressiona. Em 12
meses, combustíveis e energia subiram 31,52%, os combustíveis domésticos, como
gás de cozinha, 35,9%, a energia elétrica residencial 30,27% e transportes,
19,59%. Já em seu relatório de inflação de setembro o Banco Central observou
que “energia elétrica e combustíveis têm estado entre os itens com maior
contribuição para a volatilidade do IPCA, sendo canais pelos quais a inflação
pode ser afetada de forma rápida e significativa por fatores voláteis e pouco
previsíveis a curto prazo”. Ambos, mais a variação das commodities em reais
explicaram 90% da variação da inflação em relação ao cenário básico. A
explicação continua válida.
A inflação encerrou 2015 em 10,67%, o mesmo
IPCA em doze meses que o atual. As situações têm semelhanças - o BC testou o
limite de baixa dos juros em ambas -, mas há diferenças importantes que tornam
mais difícil o trabalho das autoridades monetárias agora. No governo Dilma, os
investidores não entenderam quando o BC, comandado por Alexandre Tombini,
começou a reduzir os juros quando a inflação estava aumentando. A Selic caiu a
7,25%, uma proeza até então. Mas a economia estava aquecida, havia controles
artificiais dos preços de combustíveis e fortes estímulos a investimentos e
consumo. A inflação disparou e os juros subiram.
O BC de Roberto Campos reduziu os juros a
2% com o aval de grande parte dos analistas, que apostava que a inflação
ficaria abaixo do piso da meta em 2020, ano da pandemia e de seus fortes
efeitos iniciais deflacionários. A recuperação da pandemia foi rápida,
auxiliada por grande estímulo fiscal, mas cercada de problemas, como a dos distúrbios
globais nas cadeias de produção e encarecimento das matérias primas e fretes. A
demanda só voltou ao que era antes do surgimento da covid-19 há poucos meses -
no caso de alguns serviços, nem isso - e esse nível já era medíocre. O PIB
cresceu 1,4% em 2019.
Assim, se a crise inflacionária de 2014
prescrevia os remédios clássicos de política monetária, a de 2021, que afeta
não só o Brasil, traz desafios nada triviais. A curva de juros chegou a apontar
taxa Selic a 14% (Nilson Teixeira, Valor,
ontem), o que poderia jogar a inflação abaixo da meta de 3,25% em 2022, ao
custo de forte recessão. Mesmo com Selic menor, de 9,5%, as previsões para a
economia em 2022 já apontavam expansão abaixo de 1% ou mesmo retração.
A calibragem da taxa de juros exige agora
sensibilidade, e não o piloto automático insensato de mais juros, reação padrão
dos mercados. A rigor, a economia sequer se recuperou ainda da recessão
iniciada em 2014 e uma nova estagnação, após uma cruel pandemia, provocará um
custo social ainda maior do que o que já se está pagando, com desemprego alto,
que aumentará mais, queda de renda mais acentuada etc.
Não há dúvida de que a inflação prejudica
principalmente os mais pobres e é preciso derrubá-la a um nível suportável. Mas
nas condições adversas em que o BC opera, é preciso testar com cautela o nível
que trará a inflação para perto da meta ao mesmo tempo que minimiza custos
econômicos e sociais, uma meta (secundária) do BC agora independente. No estado
frágil da economia, um overshooting de juros não seria a coisa certa a fazer.
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