Valor Econômico
Como De la Rúa, Doria e Moro convertem
defeitos em virtude
Em maio de 1999, a campanha do então
candidato a presidente da Argentina, Fernando de La Rúa, lançou um spot que
marcaria a história do marketing político. Criticado pelos adversários, que lhe
impingiram a pecha de entediante e insosso, De la Rúa não queria, mas acabou
convencido por seus marqueteiros de que deveria assumir a fama. No anúncio de
um minuto na TV, o prefeito de Buenos Aires converteu o que era defeito em
virtude, ao passo em que desferia um eficiente ataque aos adversários.
“Dizem que sou chato [aburrido]. Será porque não dirijo Ferraris?”, afirmava o candidato. A peça exibia imagens do então presidente Carlos Menem sorrindo ao volante, saindo do cockpit de um Fórmula 1, em contraste com cenas de argentinos empobrecidos e menções à corrupção no país.
“Será para que se divirtam enquanto há pobreza, que se divirtam enquanto há desemprego, que se divirtam enquanto há impunidade? (...) Eu vou acabar com esta festa para uns poucos”, declarava, em tom sério, na propaganda que foi considerada um dos pilares da eleição à Casa Rosada, na qual derrotaria o governista Eduardo Duhalde. Dois anos depois, não houve marketing que o salvasse e De la Rúa renunciou ao cargo na maior crise política, econômica e social da Argentina.
Mas o caso de sucesso da campanha no país
vizinho serve até hoje de exemplo para a (re)construção da imagem de políticos.
Na semana passada, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), que disputa as
prévias tucanas, lançou uma peça de dois minutos e meio com estratégia idêntica
à de De la Rúa. Expõe os apelidos e críticas que recebeu de petistas e
bolsonaristas e assume a falta de carisma, tal como ousou o argentino, com o
mesmo adjetivo.
“O Doria pode ser coxinha, usar calça
apertada e exagerar no marketing pessoal. Ele pode até ser chato. Mas ele fez o
que qualquer presidente cabeça no lugar faria: trabalhar sem importar o
partido, a ideologia, o sexo, a religião. Sabe o resultado de ter no comando um
cara chato e detalhista, que usa calça apertada e que só pensa em trabalhar? É
o que São Paulo está vivendo agora”, diz o locutor.
A propaganda passa a enumerar um conjunto
de realizações do governo Doria e insiste na conversão do atributo negativo -
de certo revelado por pesquisas - numa qualidade: “É tanta coisa que vale a
pena passar no site e ver o que dá ter um cara chato no comando. Agora, eu te
pergunto, não é melhor ter um presidente chato, mas competente, que resolva a
vida de todos, do que ter que se contentar com mais do mesmo?”.
Sem o impacto do original, a versão
nacional do “aburrido” parece inspirar outro candidato do Planalto. Em seu
primeiro discurso como filiado ao Podemos, na quarta-feira, o ex-juiz Sergio
Moro preferiu reconhecer o que se diz sobre sua fala: que ela, monocórdica, é
aguda, esganiçada, especialmente quando tenta variá-la. O tom anasalado também
já lhe valeu o apelido de “marreco”, conferido pelos adversários. Em sua
entrada para a política eleitoral, Moro tem recorrido à fonoaudiologia para
melhorar a dicção.
Enquanto o resultado não aparece, busca
converter o problema em algo positivo. “Eu confesso que estou um pouco ansioso
quanto a falar hoje neste palco. Não tenho uma carreira política e não sou
treinado em discursos. Alguns até dizem que não sou eloquente e não gostam da
minha voz... Mas, se eventualmente eu não sou a melhor pessoa para discursar,
posso assegurar que sou alguém em quem vocês podem confiar”, iniciou o ex-juiz.
“Por isso, peço atenção às minhas palavras, muito além da minha voz. O Brasil
não precisa de líderes que tenham voz bonita. O Brasil precisa de líderes que
ouçam e atendam a voz do povo brasileiro”.
Outro pré-candidato que busca quebrar a
polarização entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o atual Jair
Bolsonaro, rumo ao PL, o ex-ministro Ciro Gomes (PDT) também procurou reduzir a
rejeição ao seu nome, num vídeo intitulado “A pior das calúnias”. Divulgado em
redes sociais há menos de um mês e meio, nele o pedetista tenta esclarecer a
declaração dada em 2002, quando afirmou que o papel de sua ex-mulher e atriz
Patricia Pillar, na campanha presidencial daquele ano, era o de dormir com ele.
“Foi uma brincadeira de muito mau gosto”, reconheceu Ciro. O ex-ministro trata
do episódio numa conversa em formato de entrevista com sua atual mulher,
Giselle Bezerra, no esforço de validação para afastar as críticas de sexismo.
Principal concorrente interno de Doria no
PSDB, o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, deu a largada para a
campanha nas prévias do partido com uma declaração em que assumiu a
homossexualidade, em julho, no programa de entrevistas do jornalista Pedro
Bial. Foi uma maneira de desarmar opositores que apostam no preconceito ao
mesmo tempo em que ganhou mais holofotes ao abordar a vida privada.
“Nesse país, com pouca integridade nesse
momento, a gente precisa debater o que se é, para que se fique claro e não
tenha nada a esconder. Eu sou gay; eu sou gay. E sou um governador gay. Não sou
um gay governador tanto quanto Obama nos Estados Unidos não foi um negro
presidente. Foi um presidente negro. E tenho orgulho disso”.
Numa corrida presidencial por enquanto
binária, não deixa de ser curioso que os demais postulantes dediquem-se a
construir imagens e defendê-las de ataques - muitas vezes por atributos que
parecem irrelevantes - enquanto os favoritos, acostumados à má reputação,
dominam a cena. A popularidade de Lula e Bolsonaro vai além do marketing e
passa por um dos conhecidos tipos de dominação segundo Weber: o carisma.
Dilma não o tinha, mas sua fonte era a do
padrinho político. De la Rúa tampouco. Mas a estratégia do “aburrido” encontra
mais espaço a partir do momento em que Menem é impedido de concorrer ao
terceiro mandato.
Como Lula não está no comando, é Bolsonaro
que terá seu poder de encantamento posto à prova, face à economia. Para a
terceira via, se ela degringolar, será sua grande chance, por mais chato que
seja para a população.
Cristian Klein
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