sexta-feira, 12 de novembro de 2021

Fernando Luiz Abrucio* - A pobreza do governo Bolsonaro

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Fragilidade de políticas sociais condena o Brasil a ter um futuro pior, mas que talvez garanta o presidente no segundo turno

A covid-19 fez o bolsonarismo descobrir a importância da pobreza e da desigualdade no Brasil, temas praticamente negligenciados no começo do mandato. O governo ganhou de presente do Congresso Nacional o Auxílio Emergencial e viu a popularidade presidencial crescer fortemente. Mesmo assim, o Executivo federal não foi capaz de manter no início de 2021 uma transferência de renda digna aos mais pobres que sofriam com a pandemia. Agora, o presidente Bolsonaro e o Centrão perceberam que sua sobrevivência eleitoral depende de um novo programa de ajuda, que querem turbinar no curto prazo. Em poucas palavras, essa proposta revela a pobreza do projeto bolsonarista de políticas sociais.

Cinco aspectos realçam a fragilidade da política social defendida pela dupla Bolsonaro-Centrão. O primeiro deles refere-se à precariedade institucional da visão bolsonarista. O modelo apresentado ao Congresso supõe um financiamento por apenas um ano dos gastos com a população mais pobre. O governo acabou com o Bolsa Família, programa consolidado por 18 anos de implementação bem-sucedida e aprovado por gente das mais diversas colorações ideológicas e partidárias. Colocou no lugar o Auxílio Brasil, que poderá ser apenas um esparadrapo para tapar a crise social (ou uma parte dela) em 2022. Há a hipótese de o país ficar sem nenhum programa de transferência de renda de combate à pobreza em 2023.

É necessário frisar que a instabilidade de políticas tem um impacto terrível sobre os mais pobres. Poucos meses sem auxílio financeiro podem significar a perda de moradia, a retirada de filhos da escola, o aumento da violência doméstica, a desestruturação familiar e, no estágio mais drástico, a entrada numa condição de miséria que leva à fome cotidiana e à morte. Um dos aspectos mais importantes do Bolsa Família foi ter se tornado um programa estável e de longo prazo contra a pobreza, evitando os efeitos perversos da miserabilidade no curto prazo e garantindo uma ação intergeracional, pois quando crianças e jovens ficam por um tempo em situação precária de vida isso pode ter consequências permanentes sobre seu desenvolvimento.

A opção por um programa-esparadrapo para lidar com a pobreza, como é hoje a proposta institucional do Auxílio Brasil, é o pior dos modelos de política social para os mais pobres do país. Nunca se deve esquecer que Bolsonaro sempre foi um ferrenho detrator do Bolsa Família, porque não acredita que transferências de renda contínuas aos mais vulneráveis sejam necessárias. Sempre disse que o emprego seria a melhor solução, não compreendendo que a passagem da miséria e da pobreza para a empregabilidade, nas condições socioeconômicas do Brasil, não se dá num passe de mágica, pois nossa desigualdade foi construída ao longo de muitas décadas. No fundo, o aumento temporário e precário do valor do auxílio é um engodo de quem nunca gostou dos pobres, mas que precisa do voto deles em 2022.

Uma segunda fragilidade da proposta bolsonarista reside no fato de que qualquer política social de combate à pobreza vai além da transferência de renda. Ela depende da conjugação de ações de vários setores no apoio às famílias mais pobres, em especial nos campos da saúde, educação e assistência social - e se o país no futuro quiser melhorar esse modelo, terá de incluir outras áreas, como habitação.

Ora, o problema do presidente Bolsonaro é que suas políticas sanitárias, educacionais e assistenciais são desastrosas e desarticuladas entre si. Isso ficou claro durante a pandemia, mesmo quando o Auxílio Emergencial teve um piso de R$ 600 e um teto de R$ 1.200. Essa ajuda financeira mais ampla deveria ter evitado a morte de milhares de pessoas pobres, mas infelizmente ocorreu o contrário. Morreram de covid-19 principalmente os negros, os que vivem nas periferias urbanas e/ou em áreas com menor assistência do Estado, os idosos e/ou com comorbidades que ficam no andar de baixo da escala social brasileira.

Na educação aconteceu um fenômeno semelhante, porque foram os alunos das escolas públicas com maior vulnerabilidade social que não tiveram acesso ao ensino remoto, o que aumentou a desigualdade entre eles e as crianças e jovens mais aquinhoados de recursos. O governo federal também não entendeu que o apoio às famílias deve ir além de dinheiro, negligenciando uma rede assistencial que foi construída nos últimos 20 anos e que tem enorme capilaridade nos municípios. Esse desprezo em relação ao arsenal de programas e equipamentos da assistência social foi fatal, uma vez que a multiplicidade de problemas derivados da pobreza foi deixada de lado, ampliando várias carências sociais.

Sem ter melhores políticas sociais num sentido mais amplo e que atuem de forma integrada, será muito difícil combater a pobreza. A esse erro do governo Bolsonaro soma-se uma terceira fragilidade de sua proposta: falta-lhe um modelo de gestão adequado para fazer uma política bem-sucedida para melhorar a vida dos mais pobres. Antes de mais nada, o Auxílio Brasil é carente de um diagnóstico amplo sobre a situação social do país e, sobretudo, sobre o Bolsa Família. Observando várias das ações governamentais atuais, parece que o bolsonarismo geralmente quer destruir o que deu certo em outros governos e colocar algo pior no lugar.

Três das principais marcas do Bolsa Família foram solenemente ignoradas - ou o governo Bolsonaro não entendeu nada do que aconteceu no Brasil nos últimos anos no combate à pobreza. São elas a unicidade, a intersetorialidade e o cadastro único. A proposta atual fragmenta a política com vários auxílios dispersos, perdendo o ganho obtido com a unificação de programas de transferência. Além disso, embora tenha ações que se ligam a outros setores, não faz uma interligação intersetorial efetiva nem estabelece um modelo claro de condicionalidades, o que exigiria, inclusive, ter boas políticas de saúde, assistência social e educação, exatamente onde está a tríade do desastre bolsonarista de gestão, competindo com a política selvagem contra o meio ambiente. Por fim, deixa de aproveitar o cadastro único como instrumento para monitorar, avaliar e planejar estrategicamente a política de transferência de renda. Mas para que ter uma estrutura bem organizada e voltada para o longo prazo se o objetivo é só ganhar as eleições do ano que vem?

A quarta fragilidade do modelo bolsonarista está em montar um modelo que ignora a necessidade dos arranjos federativos com os governos subnacionais. Na verdade, o governo Bolsonaro montou um modelo de federalismo de desresponsabilização da União em relação às desigualdades regionais e territoriais, de confronto com Estados e municípios e que tem gerado descoordenação das políticas públicas, como mostrei recentemente, junto com os professores B. Guy Peters e Eduardo Grin, em livro lançado recentemente na Inglaterra (American Federal Systems and COVID-19: Responses to a Complex Intergovernmental Problem - Emerald Publishing).

O bolsonarismo já tinha buscado destruir o federalismo cooperativo que havia no SUS - não conseguiu por completo, mas fez um grande estrago -, enfraquecer o papel do MEC junto às redes estaduais e municipais e agora quer um modelo de transferência de renda que pule os prefeitos e à sociedade local. Qual é o objetivo disso? Não dividir as glórias do Auxílio Brasil com ninguém, a não ser com os deputados do Centrão.

O fortalecimento das relações intergovernamentais nas políticas sociais foi um dos grandes avanços do Brasil nos últimos anos. Isso diminuiu o clientelismo e aumentou a efetividade da ação governamental em prol dos mais pobres. Ao apostar num modelo contrário a esse, Bolsonaro não só escolhe aliar-se aos políticos mais atrasados do Centrão para manter um modelo patrimonialista e corrupto (vide o “orçamento secreto”), como também piora a qualidade da intervenção estatal.

Em sua quinta dimensão e como corolário das fragilidades do modelo bolsonarista, a proposta do Auxílio Brasil não está articulada com a sociedade organizada, em especial com aquelas organizações que lutaram heroicamente para dar comida e condições básicas aos pobres brasileiros nos dois últimos anos de crise. É fundamental fazer alianças com setores sociais e ONGs que montam tecnologias muito eficientes de apoio aos mais pobres, algo que já tinha sido percebido desde a redemocratização por figuras como Betinho, Ruth Cardoso, Patrus Ananias e Eduardo Lyra.

Nem se falou aqui da ausência de uma política mais ampla de combate à desigualdade, porque Bolsonaro só se mobiliza para ajudar os mais necessitados para ganhar votos. O presidente não tem um projeto mais amplo de redução das características multidimensionais da desigualdade - territorial, de gênero e racial. Para ele, havendo qualquer tipo de emprego é melhor do que mudar as condições e as capacidades de a população construir um futuro melhor. Sua filosofia em relação à desigualdade pode ser assim resumida: é melhor ser serviçal e ter uns trocados do que ter direitos.

A pobreza do bolsonarismo em políticas sociais condena o Brasil a ter um futuro pior, mas talvez garanta a ida de Bolsonaro ao segundo turno e a eleição de uma parte do Centrão. Assim, o que virá a partir de 2023 é uma hecatombe social de larga escala. A elite brasileira precisa começar a pensar neste cenário.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.

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