Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Fragilidade de políticas sociais condena o
Brasil a ter um futuro pior, mas que talvez garanta o presidente no segundo
turno
A covid-19 fez o bolsonarismo descobrir a
importância da pobreza e da desigualdade no Brasil, temas praticamente
negligenciados no começo do mandato. O governo ganhou de presente do Congresso
Nacional o Auxílio Emergencial e viu a popularidade presidencial crescer
fortemente. Mesmo assim, o Executivo federal não foi capaz de manter no início
de 2021 uma transferência de renda digna aos mais pobres que sofriam com a
pandemia. Agora, o presidente Bolsonaro e o Centrão perceberam que sua
sobrevivência eleitoral depende de um novo programa de ajuda, que querem
turbinar no curto prazo. Em poucas palavras, essa proposta revela a pobreza do
projeto bolsonarista de políticas sociais.
Cinco aspectos realçam a fragilidade da política social defendida pela dupla Bolsonaro-Centrão. O primeiro deles refere-se à precariedade institucional da visão bolsonarista. O modelo apresentado ao Congresso supõe um financiamento por apenas um ano dos gastos com a população mais pobre. O governo acabou com o Bolsa Família, programa consolidado por 18 anos de implementação bem-sucedida e aprovado por gente das mais diversas colorações ideológicas e partidárias. Colocou no lugar o Auxílio Brasil, que poderá ser apenas um esparadrapo para tapar a crise social (ou uma parte dela) em 2022. Há a hipótese de o país ficar sem nenhum programa de transferência de renda de combate à pobreza em 2023.
É necessário frisar que a instabilidade de
políticas tem um impacto terrível sobre os mais pobres. Poucos meses sem
auxílio financeiro podem significar a perda de moradia, a retirada de filhos da
escola, o aumento da violência doméstica, a desestruturação familiar e, no
estágio mais drástico, a entrada numa condição de miséria que leva à fome
cotidiana e à morte. Um dos aspectos mais importantes do Bolsa Família foi ter
se tornado um programa estável e de longo prazo contra a pobreza, evitando os
efeitos perversos da miserabilidade no curto prazo e garantindo uma ação
intergeracional, pois quando crianças e jovens ficam por um tempo em situação
precária de vida isso pode ter consequências permanentes sobre seu
desenvolvimento.
A opção por um programa-esparadrapo para
lidar com a pobreza, como é hoje a proposta institucional do Auxílio Brasil, é
o pior dos modelos de política social para os mais pobres do país. Nunca se
deve esquecer que Bolsonaro sempre foi um ferrenho detrator do Bolsa Família,
porque não acredita que transferências de renda contínuas aos mais vulneráveis
sejam necessárias. Sempre disse que o emprego seria a melhor solução, não
compreendendo que a passagem da miséria e da pobreza para a empregabilidade,
nas condições socioeconômicas do Brasil, não se dá num passe de mágica, pois
nossa desigualdade foi construída ao longo de muitas décadas. No fundo, o
aumento temporário e precário do valor do auxílio é um engodo de quem nunca
gostou dos pobres, mas que precisa do voto deles em 2022.
Uma segunda fragilidade da proposta
bolsonarista reside no fato de que qualquer política social de combate à
pobreza vai além da transferência de renda. Ela depende da conjugação de ações
de vários setores no apoio às famílias mais pobres, em especial nos campos da
saúde, educação e assistência social - e se o país no futuro quiser melhorar
esse modelo, terá de incluir outras áreas, como habitação.
Ora, o problema do presidente Bolsonaro é
que suas políticas sanitárias, educacionais e assistenciais são desastrosas e
desarticuladas entre si. Isso ficou claro durante a pandemia, mesmo quando o
Auxílio Emergencial teve um piso de R$ 600 e um teto de R$ 1.200. Essa ajuda
financeira mais ampla deveria ter evitado a morte de milhares de pessoas
pobres, mas infelizmente ocorreu o contrário. Morreram de covid-19
principalmente os negros, os que vivem nas periferias urbanas e/ou em áreas com
menor assistência do Estado, os idosos e/ou com comorbidades que ficam no andar
de baixo da escala social brasileira.
Na educação aconteceu um fenômeno
semelhante, porque foram os alunos das escolas públicas com maior
vulnerabilidade social que não tiveram acesso ao ensino remoto, o que aumentou
a desigualdade entre eles e as crianças e jovens mais aquinhoados de recursos.
O governo federal também não entendeu que o apoio às famílias deve ir além de
dinheiro, negligenciando uma rede assistencial que foi construída nos últimos
20 anos e que tem enorme capilaridade nos municípios. Esse desprezo em relação
ao arsenal de programas e equipamentos da assistência social foi fatal, uma vez
que a multiplicidade de problemas derivados da pobreza foi deixada de lado,
ampliando várias carências sociais.
Sem ter melhores políticas sociais num
sentido mais amplo e que atuem de forma integrada, será muito difícil combater
a pobreza. A esse erro do governo Bolsonaro soma-se uma terceira fragilidade de
sua proposta: falta-lhe um modelo de gestão adequado para fazer uma política
bem-sucedida para melhorar a vida dos mais pobres. Antes de mais nada, o
Auxílio Brasil é carente de um diagnóstico amplo sobre a situação social do
país e, sobretudo, sobre o Bolsa Família. Observando várias das ações
governamentais atuais, parece que o bolsonarismo geralmente quer destruir o que
deu certo em outros governos e colocar algo pior no lugar.
Três das principais marcas do Bolsa Família
foram solenemente ignoradas - ou o governo Bolsonaro não entendeu nada do que
aconteceu no Brasil nos últimos anos no combate à pobreza. São elas a
unicidade, a intersetorialidade e o cadastro único. A proposta atual fragmenta
a política com vários auxílios dispersos, perdendo o ganho obtido com a
unificação de programas de transferência. Além disso, embora tenha ações que se
ligam a outros setores, não faz uma interligação intersetorial efetiva nem
estabelece um modelo claro de condicionalidades, o que exigiria, inclusive, ter
boas políticas de saúde, assistência social e educação, exatamente onde está a
tríade do desastre bolsonarista de gestão, competindo com a política selvagem
contra o meio ambiente. Por fim, deixa de aproveitar o cadastro único como
instrumento para monitorar, avaliar e planejar estrategicamente a política de
transferência de renda. Mas para que ter uma estrutura bem organizada e voltada
para o longo prazo se o objetivo é só ganhar as eleições do ano que vem?
A quarta fragilidade do modelo bolsonarista
está em montar um modelo que ignora a necessidade dos arranjos federativos com
os governos subnacionais. Na verdade, o governo Bolsonaro montou um modelo de
federalismo de desresponsabilização da União em relação às desigualdades
regionais e territoriais, de confronto com Estados e municípios e que tem
gerado descoordenação das políticas públicas, como mostrei recentemente, junto
com os professores B. Guy Peters e Eduardo Grin, em livro lançado recentemente
na Inglaterra (American Federal Systems and COVID-19: Responses to a Complex
Intergovernmental Problem - Emerald Publishing).
O bolsonarismo já tinha buscado destruir o
federalismo cooperativo que havia no SUS - não conseguiu por completo, mas fez
um grande estrago -, enfraquecer o papel do MEC junto às redes estaduais e
municipais e agora quer um modelo de transferência de renda que pule os
prefeitos e à sociedade local. Qual é o objetivo disso? Não dividir as glórias
do Auxílio Brasil com ninguém, a não ser com os deputados do Centrão.
O fortalecimento das relações
intergovernamentais nas políticas sociais foi um dos grandes avanços do Brasil
nos últimos anos. Isso diminuiu o clientelismo e aumentou a efetividade da ação
governamental em prol dos mais pobres. Ao apostar num modelo contrário a esse,
Bolsonaro não só escolhe aliar-se aos políticos mais atrasados do Centrão para
manter um modelo patrimonialista e corrupto (vide o “orçamento secreto”), como
também piora a qualidade da intervenção estatal.
Em sua quinta dimensão e como corolário das
fragilidades do modelo bolsonarista, a proposta do Auxílio Brasil não está
articulada com a sociedade organizada, em especial com aquelas organizações que
lutaram heroicamente para dar comida e condições básicas aos pobres brasileiros
nos dois últimos anos de crise. É fundamental fazer alianças com setores
sociais e ONGs que montam tecnologias muito eficientes de apoio aos mais
pobres, algo que já tinha sido percebido desde a redemocratização por figuras
como Betinho, Ruth Cardoso, Patrus Ananias e Eduardo Lyra.
Nem se falou aqui da ausência de uma
política mais ampla de combate à desigualdade, porque Bolsonaro só se mobiliza
para ajudar os mais necessitados para ganhar votos. O presidente não tem um
projeto mais amplo de redução das características multidimensionais da
desigualdade - territorial, de gênero e racial. Para ele, havendo qualquer tipo
de emprego é melhor do que mudar as condições e as capacidades de a população
construir um futuro melhor. Sua filosofia em relação à desigualdade pode ser
assim resumida: é melhor ser serviçal e ter uns trocados do que ter direitos.
A pobreza do bolsonarismo em políticas
sociais condena o Brasil a ter um futuro pior, mas talvez garanta a ida de
Bolsonaro ao segundo turno e a eleição de uma parte do Centrão. Assim, o que
virá a partir de 2023 é uma hecatombe social de larga escala. A elite
brasileira precisa começar a pensar neste cenário.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
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