O Globo
Peço licença aos leitores deste espaço para
fazer uma pausa nas análises da política e da economia para render uma
homenagem. Nós, jornalistas, somos bichos por vezes arrogantes, sabe-tudo
demais, para reverenciar aqueles e aquelas que vieram antes de nós abrindo
portas, roçando o caminho, ensinando o riscado. E ontem nós perdemos, o Brasil
perdeu, uma dessas jornalistas que foram guias de muitas gerações, inclusive da
minha.
Cheguei a Brasília aos 26 anos, já com
quatro anos de cobertura de política na bagagem, mas crua de tudo. Já naquela
época, 1999, os grandes nomes da análise política eram de mulheres: Dora
Kramer, Eliane Cantanhêde, Tereza Cruvinel, Helena Chagas e ela, Cristiana
Lôbo.
Eu olhava para aquelas grandes damas do jornalismo político, cujos nomes e fotos encimavam as principais colunas dos jornais, e as achava inalcançáveis.
E, das muitas coisas que trabalhar em
Brasília ensina, uma é que lá está todo mundo ralando no dia a dia do
Congresso, nos quebra-queixos no Planalto, fazendo portaria em ministérios,
levando chá de cadeira em gabinetes.
Em todos esses espaços, Cristiana
sobressaía com seu humor irreverente, sua crítica ácida aos poderosos, sua
análise arguta e rápida e, em igual medida, sua generosidade genuína com os
colegas mais jovens, recém-chegados ou que ela mal conhecia.
Essa não é uma qualidade abundante no
jornalismo, ou ao menos não era nas redações eminentemente masculinas,
competitivas e dominadas pela cultura do grito como exercício de poder de onde
eu vinha, em São Paulo.
O aprendizado que tive com a Cris e com
essas outras mulheres — sobretudo com uma delas, Renata Lo Prete, minha chefe,
mentora e depois, hoje e para sempre irmã — foi a tradução na prática de uma
palavra cujo significado demorei a absorver: sororidade.
Cristiana, ao ser precursora da análise
política na televisão já depois dos 40 anos, quebrou muitas barreiras ao mesmo
tempo. A primeira, de gênero. Se, no jornalismo impresso, as mulheres já davam
a letra, como eu disse, na TV os espaços ainda eram fechados à opinião
feminina, principalmente num tema espinhoso como a política.
Outra barreira foi a do etarismo. Hoje não
é incomum que jornalistas que fizeram sua carreira escrevendo sejam convocadas
para a frente da tela depois dos 40, mas isso foi revolucionário nos anos 1990,
e todas nós, que chegamos depois, devemos muito a ela, Míriam Leitão e outras
pioneiras.
A aridez, a pressa e o ódio reinantes no
ambiente virtual, onde estrategicamente a imprensa foi escolhida pelos políticos,
e mais acentuadamente pelo bolsonarismo, como inimiga pública número um,
impedem que mostremos ao leitor, espectador e ouvinte que somos de carne e
osso.
Assim como em qualquer ramo da atividade
humana, também o jornalismo é feito a partir do trabalho de geração após
geração, cada uma com seus desafios, suas características e, sobretudo, seu
legado para as próximas.
Se somos muito pródigos em apontar tendências
na política, na economia e nas artes, em cobrir fatos que se tornarão
históricos dali a alguns anos e em destacar profissionais de relevo em
múltiplas atividades, ainda somos muito tímidos, por vezes pouco generosos, em
contar a história dos homens e mulheres que constroem o edifício da imprensa
brasileira.
A morte prematura da Cristiana deixou muito
clara a importância que ela teve nessa construção. Perdemos uma referência e
uma incentivadora do nosso trabalho.
Homenagear quem veio antes de nós é um reconhecimento
de que não seríamos quem somos se não tivéssemos tido pessoas a nos pegar pela
mão. Essa é uma lição que procuro pôr em prática dia a dia no meu trabalho. E
esta coluna é um agradecimento a ela, que fará tanta falta, e a todos esses
homens e mulheres que me estenderam a mão.
Nenhum comentário:
Postar um comentário