sexta-feira, 12 de novembro de 2021

Rogério Furquim Werneck - A desmoralização do teto de gastos

O Globo

Estamos presenciando uma séria ruptura de um processo de cinco anos de reconstrução da política econômica

Qual era mesmo a ideia do teto de gastos? Ao fim da devastação fiscal perpetrada pela presidente Dilma Rousseff, não havia como viabilizar o gigantesco ajuste de contas públicas que seria requerido para restabelecer controle sobre o endividamento do governo. E para conter a grave crise de confiança que se instalara, já não bastavam novas e vagas promessas de ajuste fiscal no futuro.

O teto de gastos foi a solução a que se chegou para se ganhar tempo para viabilizar uma mudança paulatina do regime fiscal que pudesse estabilizar o endividamento público. Foi um “pacto de Ulisses”, em que o país se amarrou ao mastro de uma limitação constitucional à expansão do gasto público, para dar credibilidade a suas renovadas promessas de esforço persistente de ajuste fiscal.

O que se esperava, com algum otimismo, é que, ao impor uma restrição orçamentária efetivamente rígida, o teto tornasse proibitivos os custos da preservação do regime fiscal e, com isso, estimulasse a aprovação das reformas que se faziam necessárias.

Não faltou quem arguisse que tal expectativa era ingênua. E que o mais provável era que o teto acabasse induzindo, não o avanço do programa de reforma fiscal requerido, mas o surgimento de uma coalizão imbatível a favor do afrouxamento ou da simples revogação da limitação constitucional à expansão do gasto público. Justo o que estamos presenciando no momento.

Trata-se de séria ruptura do longo processo de reconstrução da política econômica que teve início no governo Temer. Em face das urgências eleitorais do governo, o Ministério da Economia acabou não resistindo à mobilização do Planalto e do Centrão para entortar as regras fiscais em vigor e abrir espaço para a expansão de gastos.

A desmoralização do teto de gastos implica volta a um regime fiscal sem restrição orçamentária rígida, com desdobramentos potenciais desastrosos, mais do que bem conhecidos no país. Juntamente com o calote dos precatórios, aponta para uma dinâmica de dívida pública bem mais adversa nos próximos anos.

Amplifica efeitos fiscais deletérios que já advirão da rápida elevação de taxas de juros que a aceleração da inflação vem exigindo. E ressuscita o fantasma da dominância fiscal, que parecia ter sido momentaneamente afastado pela providencial queda da relação dívida/PIB, propiciada pelo salto no valor do PIB nominal que adveio da rápida aceleração da inflação.

A busca persistente e sensata de racionalidade e coerência na condução da política econômica cedeu lugar a um clima de vale-tudo, sem plano de jogo, em que impera a improvisação, o oportunismo e descompromisso com a responsabilidade fiscal.

O debate relevante sobre política econômica, tanto no governo como no Congresso, passou a se dar em ambiente muito mais permissivo, com defesa escancarada de medidas gritantemente populistas, que ainda há poucos meses teriam sido tratadas como anátema.

Poderá tal retrocesso ser revertido, a partir do início de 2023? Que fatores deverão condicionar a possibilidade de reversão? É preciso ter em conta que o retrocesso não se deve a uma disfunção restrita ao Poder Executivo. É importante ter clareza sobre o que ocorreu no Congresso, especialmente na Câmara, desde fevereiro.

Na esteira da montagem do orçamento secreto, Arthur Lira, articulado com Ciro Nogueira, no Planalto, passou a controlar sólida maioria na Câmara, que vem sendo operada como rolo compressor, inclusive para dar sustentação ao avanço do Centrão sobre a condução da política econômica.

Para que tamanho retrocesso possa ser revertido, o país terá que eleger um presidente inequivocamente comprometido com um programa sério de ajuste fiscal, que seja capaz de se contrapor ao clima de escancarada irresponsabilidade que hoje domina o Congresso. O controle da Câmara pelo Centrão parece ter vindo para ficar.

Alguém acredita mesmo que os dois candidatos que hoje lideram as pesquisas de intenção de voto na disputa presidencial estejam à altura desse desafio?

 

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