O Globo
Imagine um país mergulhado na
vulnerabilidade social, provocada por meia década de recessão e estagnação,
agravada por dois anos da mais letal pandemia em um século. Imagine um país com
19 milhões de famintos, que disputam ossos e pelancas em caminhões e lixeiras
no coração das metrópoles. Imagine um país com quase 14 milhões de
desempregados e um em cada quatro trabalhadores na informalidade. Imagine um
país em que crianças e adolescentes ficaram ano e meio sem ir à escola e, por
isso, passaram a enfrentar insegurança alimentar e violência doméstica. Esse
país é o Brasil, e o governo Jair Bolsonaro, diante da tragédia, desmontou o
mais bem-sucedido programa de transferência de renda já implementado, o Bolsa
Família, para pôr no lugar um obscuro substituto, o Auxílio Brasil.
Desde o anúncio do fim do Bolsa Família,
cujos últimos pagamentos foram creditados na virada do mês, a política social
mergulhou num mar de dúvidas, que abarca população e sistema de assistência
social, especialistas e parlamentares. Na capital fluminense, nesta semana, as
unidades do Centro de Referência em Assistência Social (Cras ) em dez áreas do
Rio viram a demanda por atendimento triplicar, principalmente nos bairros da
Zona Oeste e nos conjuntos de favelas da Zona Norte, caso da Maré e dos
complexos do Alemão e do Chapadão.
— Fazíamos 70 cadastros por dia em média. Nos últimos dias, os Cras amanhecem com filas de 200 pessoas —, contou a secretária municipal de Assistência Social, Laura Carneiro.
Tanto beneficiários do Bolsa Família quanto
pessoas que receberam o Auxílio Emergencial e querem se inscrever no Cadastro
Único estão lotando os pontos de atendimento da prefeitura. Saem, em grande
parte dos casos, sem informação. O Ministério da Cidadania informou que, neste
mês, “aproximadamente 14,5 milhões de famílias serão atendidas” (com repasse
médio de R$ 217), sem especificar o total por estado ou município. Em dezembro,
o total de famílias cobertas com o Auxílio Brasil passará a 17 milhões (50
milhões de pessoas), número suficiente para zerar a fila de espera do programa.
Ano que vem, de eleição presidencial, a intenção é pagar R$ 400 de janeiro a
dezembro.
— O governo nem sequer apresentou as contas
que o levaram a esse desenho, nem o impacto esperado em redução da pobreza ou
da desigualdade, coisas básicas em política social. Por que pagar R$ 400 a 17
milhões, não R$ 350 a 20 milhões de famílias? Não sabemos — analisou a
socióloga Letícia Bartholo, especialista em políticas públicas e gestão
governamental.
Há um rastro de interrogações pelo caminho.
Como não houve diálogo, reuniões, informações trocadas com governos estaduais e
municipais, as equipes locais não têm condições de prestar esclarecimentos à
população. As prefeituras também não tiveram acesso à base do Auxílio
Emergencial para efetuar o cruzamento de dados.
O Bolsa Família foi uma política orientada
aos arranjos familiares, sobretudo com crianças, gestantes e nutrizes; o
auxílio de enfrentamento à pandemia, a indivíduos. Ainda segundo o Ministério
da Cidadania, o Auxílio Emergencial atendeu 39,4 milhões de pessoas em 2021,
dos quais 34,4 milhões receberam a última parcela. Do total, 9,3 milhões
estavam no Bolsa Família, 4,5 milhões no Cadastro Único e 20,5 milhões
habilitaram-se pelo aplicativo da Caixa. Significa que, em novembro, 25 milhões
de brasileiros estão sem proteção social.
Na cidade do Rio, a prefeitura conseguiu
habilitar 41 mil lares no Bolsa Família de janeiro a abril. Foi esse o
prazo-limite estabelecido pelo governo federal para inclusão nos sete meses do
Auxílio Emergencial 2021. Em outubro, 303 mil domicílios cariocas estavam no
Bolsa Família, cerca de 1 milhão de habitantes. O Auxílio Emergencial, por sua
vez, foi pago a 1,5 milhão de pessoas. É possível que meio milhão de moradores
da cidade estejam sem renda a partir deste mês. De maio para cá, 41.796 novas
famílias foram inseridas no Cadastro Único, mas não há certeza de que serão
incorporadas ao novo programa em dezembro.
Desde o início da pandemia, o governo
Bolsonaro já alterou a política social quatro vezes. No ano passado, pagou
auxílio emergencial de R$ 600; depois, de R$ 300. Em 2021, suspendeu o programa
por todo o primeiro trimestre; ressuscitou-o em abril com valores de R$ 150, R$
250 e R$ 375. Gastou mais de R$ 350 bilhões sem obter resultados duradouros em
diminuição da pobreza e da miséria. Agora, com arquitetura orçamentária
precária (e ainda pendente de aprovação no Senado), sepultou o Bolsa Família
para implementar um programa novo, com novas regras, nenhum diálogo, pouca
transparência e parte do benefício com prazo determinado, um ano. De improviso
e desmonte, vivemos.
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