O Estado de S. Paulo.
O histórico torna angustiante considerar o que seria um eventual segundo mandato e suas consequências
Após explicar por que julga que o Poder
Executivo perdeu o controle da política fiscal, Marcos Mendes (Política fiscal
à deriva, Folha de S.Paulo, 4/12) lança advertência para o próximo presidente
da República. “Ou Vossa Excelência constrói e controla uma coalizão majoritária
no Congresso ou alguém vai construí-la e inviabilizará o seu governo”. À qual
acrescenta: “Vossa Excelência já terá um ponto de partida ruim, tendo de
desfazer os erros que ora se acumulam”.
A composição partidária do Congresso Nacional estará decidida em 2 de outubro de 2022 e nesta data lideranças partidárias inaugurarão período de intensa barganha por posições e coalizões. Valeria, nesse contexto, advertência adicional: “Vossa Excelência não disporá de muito tempo”. Porque será necessário ter pensado e definido, para além de promessas genéricas de campanha, as linhas mestras de políticas públicas consistentes para a economia, a proteção social, a educação, a saúde, a segurança, o meio ambiente, a ciência e a tecnologia, a cultura... Algo que não tivemos nos três anos que ora se encerram e muito menos na polarizada campanha de 2018. Histórico que torna angustiante considerar o que seria um eventual segundo mandato e suas consequências.
Aldous Huxley observou que “a sobrevivência
da democracia depende da habilidade de grande número de pessoas fazer escolhas
realistas à luz de informações adequadas” (Brave New World Revisited, 1958).
Pode ser óbvio, mas, certamente, não é irrelevante. Governantes de inclinações
populistas, de “direita” ou de “esquerda”, sempre procuram interpretar a seu
modo a “voz do povo” e elevar a sua versão dessa voz à condição de verdade
oficial. Ao fazê-lo, empenham-se em controlar, desqualificar e, em casos
extremos, acovardar vozes discordantes, utilizando para tanto os amplos
recursos públicos que lhes assegura o controle do aparelho do Estado.
Em artigo recente, Marcus André Melo comentou, a propósito da sucessão de Angela Merkel, a formação de governos em contexto multipartidário. Notou o contrato programático (mais de 160 páginas) firmado pelos três partidos da nova coalizão de governo para registrar que entre nós a principal clivagem não é entre partidos e seus programas, mas entre governo e oposição. O autor chama a atenção para o papel fundamental dos partidos e das instituições de controle lato sensu (que no Brasil incluem, notadamente, Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça, Ministério Público, Polícia Federal, Tribunal de Contas da União, Receita Federal do Brasil, Conselho de Controle de Atividades Financeiras – Coaf) e conclui: “O pior dos mundos é quando postos destas instituições entram na barganha política”.
Eventos recentes me fazem pensar em artigo
que escrevi sobre a primeira década do Coaf, publicado em 2011. Reproduzo,
ligeiramente adaptado, trecho relativo à última sessão do artigo, voltada ao
grande risco a evitar:
“Em artigos publicados em 1980 em meio à
grave crise político institucional italiana da época, e que retêm surpreendente
atualidade e relevância para o resto do mundo, Norberto Bobbio expressou com
sua habitual lucidez questão fundamental de nosso tempo. ‘A ideia tradicional
de que o poder reside numa pessoa, uma restrita classe política ou em
determinadas instituições colocadas no centro do sistema social é enganadora. Não
compreendeu a estrutura ou o movimento de um sistema social aquele que não se
deu conta de que este é constituído por uma densa e complexíssima interrelação
de poderes. O poder não está apenas difuso e repartido. Ele está disposto em
estratos que se distinguem um do outro por diferentes graus de visibilidade’.”
“Há três faixas de poder. Primeiro, o
governo do poder visível, que em democracias se exerce ou deveria exercer à luz
do sol, sob controle da opinião pública. Segundo, a faixa do poder ‘semi-submerso’:
este vasto espaço ocupado pelos órgãos e entidades públicas, por meio dos quais
se exerce o dia a dia das políticas governamentais em sua dimensão operacional.
Terceiro, a faixa do poder invisível, que pode assumir três formas: um poder
invisível dirigido a lutar contra o Estado (organizações criminosas,
terroristas, narcotraficantes); um poder invisível formado e organizado não
para combater o poder público, mas para extrair benefícios ilícitos e buscar
vantagens que uma ação feita à luz do sol não conseguiria; e o poder invisível
como instituição do Estado: os (sigilosos) serviços secretos, ‘cuja degeneração
pode dar vida a uma verdadeira forma de governo oculto’.”
Há momentos na vida de um país em que
ocorre súbita e dramática elevação do interesse público sobre essas questões
que Foucault denominou de “microfísica do poder”. É o que ora ocorre no Brasil,
com relação aos meandros dos poderes semi-submersos e invisíveis, e as
relações, sempre perigosas, e com frequência espúrias, entre eles. José Guilherme
Merquior, brilhante intelectual que se foi demasiado jovem, lembrava que “o bom
combate não é contra o Estado, é contra certas formas indevidas de apropriação
e aparelhamento do Estado”.
Assim concluía o artigo referido: “Que o Coaf tenha vida longa, livre deste risco e da associada ‘degeneração’, que seus responsáveis souberam tão bem evitar em sua primeira década”. Renovo a minha esperança, e não apenas para o Coaf.
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